Quando eu era mais jovem, havia muita gente a assustar-nos com a história de como as democracias acabavam. Já não me lembro dos pormenores todos, mas creio que era assim: primeiro, apareciam tanques na rua; depois, um general na televisão, com óculos escuros. As coisas, porém, não ficavam por aí, porque era então suposto nós sairmos para a rua, fazermos barricadas como nos romances do Victor Hugo, e, quando finalmente encostados à parede, levantarmos o punho, e gritarmos “viva a liberdade”. Era assim que as democracias morriam: de pé.

Anos depois, continua a haver muita gente a contar-nos histórias sobre a morte da democracia. Já não há generais de óculos escuros. Agora, há um demagogo racista, com um corte de cabelo estranho, determinado em virar o “povo” contra as “minorias”. Como antes, porém, não se espera que fiquemos quietos. Primeiro, havemos de votar nos partidos do regime, contra o racista do penteado esquisito; e depois, se ele ganhar, fazer manifestações, para não o deixar continuar a “enganar” o “povo”. Se a democracia tiver de cair, será outra vez de pé, aos gritos.

Como se vê, entre o general de óculos escuros e o racista do cabelo bizarro, a catequese democrática tem evoluído. Três coisas, no entanto, permaneceram: a ameaça vem sempre de fora, das casernas do obscurantismo ou da demagogia “anti-sistema”; nós juntamo-nos sempre aos políticos do regime, para o defender; e o fim é invariavelmente uma convulsão cívica tremenda, digna do último acto de uma ópera.

Pois bem, esta semana, em que os dois maiores partidos da Assembleia da República concordaram em acabar com os debates quinzenais entre o primeiro-ministro e as oposições, tive dúvidas sobre esta educação democrática. Não foi a primeira vez, confesso, mas foi certamente a vez em que as dúvidas foram mais fortes. Uma dúvida é esta: as ameaças à democracia só vêm de fora do “sistema”?; a outra é esta: as democracias morrem sempre de pé? Não podem, muito simplesmente, morrer sentadas no sofá? Sem dramas, sem sequer repararem bem no que se está a passar?

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Não, as democracias não precisam de acabar com uma ruptura brusca, em que num dia temos democracia e no outro ditadura. As democracias podem, tranquilamente, degenerar. Nenhuma sondagem deu, até agora, ideia de que os portugueses estejam divorciados dos valores democráticos. Nenhum partido parlamentar propôs o fim do sistema representativo. Existe até a convicção de que a integração europeia nos garante contra evoluções autocráticas. E no entanto, a oligarquia política portuguesa começou, há tempos, a fazer experiências que sugerem que, um dia, podemos ter um regime bastante diferente daquele que nos dizem que devemos defender contra generais de óculos escuros ou racistas de penteados excêntricos.

Dir-me-ão: calma, estamos a falar apenas dos debates quinzenais com o primeiro-ministro. Apenas? O fim dos debates não tem importância apenas pelo modo como o primeiro-ministro passou a ser poupado à intensidade da discussão democrática. Tem sobretudo importância pelo que os líderes do regime disseram sobre essa discussão: afinal, acham que é apenas um “circo”, uma “gritaria”, um ritual sem significado, uma formalidade estúpida. Hoje são os debates quinzenais que são tratados assim. E amanhã, será o quê? As eleições legislativas de quatro em quatro anos? O que é que, no actual sistema, parecerá um dia inútil ou disparatado aos políticos do regime? Vimos, no tempo de Sócrates, um primeiro-ministro que achava a imprensa livre um incómodo. Temos visto, agora, um líder da oposição que acha a independência do Ministério Público um abuso. Estaremos destinados a descobrir que os nossos políticos encaram afinal todas as limitações ao seu poder, não como garantias das liberdades públicas, mas como incómodos desnecessários?

E não, não sou eu que falo de degradação do regime. É o próprio líder da oposição: “sei bem o que era a credibilidade do Parlamento há 20, 30 anos, os protagonistas que o Parlamento tinha, a consistência dos debates que havia na altura e passei agora e vejo o que hoje isto é”. O “que hoje isto é”… Por enquanto, altera-se a periodicidade dos debates. Mas poderemos nós estar completamente seguros de que, um dia, os nossos oligarcas não chegarão à conclusão de que “isto”, afinal, nem já quaisquer debates justifica?

Por onde vamos? Sim, há parlamento, mas com debates espaçados. Sim, há liberdade de expressão, mas, nos estúdios das televisões subsidiadas, só para toda a gente poder expressar a mesma opinião. Sim, há pluralidade partidária, mas quase sempre com o mesmo partido no governo desde 1995. Sim, há mercado, mas o Estado é que diz onde se põe o dinheiro. Sim, há justiça, mas não para incomodar os políticos. Estão surpreendidos? As leis não vivem de si próprias. Uma democracia supõe uma sociedade civil forte e uma massa de cidadãos independentes perante o poder, isto é, uma economia aberta e dinâmica. Que deveríamos esperar de uma sociedade empobrecida e dependente, onde só o Estado tem dinheiro, extorquido aos contribuintes e à “solidariedade europeia”? A certa altura, é fatal que a oligarquia comece a achar irrelevantes todos aqueles procedimentos que sujeitam o poder ao escrutínio de deputados ou à escolha dos eleitores. Para quê, se os deputados não tem independência e os eleitores também não? Os oligarcas já começaram a ver “o que hoje isto é”. Não se admirem se amanhã, sem serem precisos dramas, tanques ou racismos, “isto” se transformar noutra coisa.