Assinalou-se recentemente o Dia Mundial da Justiça Social. Apesar da redução da miséria, continuamos a ser um país profundamente desigual, com mais de dois milhões de pessoas em situação de pobreza e exclusão social. Infelizmente, a pandemia veio acentuar e aprofundar estas desigualdades no mundo e Portugal não é exceção.

Foi recentemente tornado público um estudo sobre os impactos da COVID-19 nos Estados Unidos, em que um dos coautores, Sérgio Rebelo, é português, e cujas conclusões são verdadeiramente perturbadoras.

Por um lado, uma das conclusões é que o desemprego e a perda de rendimentos afetaram mais intensamente as pessoas mais pobres. Seja, por exemplo, porque eram aqueles que tinham vínculos laborais mais frágeis ou porque trabalhavam em setores especialmente afetados pela pandemia, como é o caso da hotelaria e da restauração. Em Portugal, esta conclusão também se confirma pela análise da execução orçamental, que mostra que, paradoxalmente, a receita de IRS aumentou em 2020. Uma das razões que explica a não erosão da receita fiscal foi a circunstância de aqueles que foram mais afetados pela pandemia não estarem sequer sujeitos a IRS.

Por outro lado, e esta foi a conclusão que mais perplexidade me causou, estes investigadores traçaram uma relação entre as elevadas taxas de mortalidade e os baixos rendimentos. Ou melhor, demonstraram que as desigualdades de rendimentos que já existiam antes da Covid-19 tiveram um impacto nas mortes verificadas durante a pandemia. Explicam que, para além de as pessoas de baixos rendimentos estarem mais expostas ao vírus em resultado, também, do tipo de trabalho ou meio de deslocação, as suas condições de saúde preexistentes tornaram-nas mais vulneráveis ao vírus e com maiores índices de mortalidade. Ou seja, as desigualdades matam, de facto.

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Estas conclusões de que o vírus tem um impacto especialmente brutal junto dos mais frágeis, mais do que lamentos ou lamúrias, obrigam a que esta seja a nossa prioridade na reação social e económica à pandemia. O Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) tem de servir, antes de tudo o mais, para diminuir as desigualdades e reforçar a coesão social, que já agora, só se faz com o reforço da coesão territorial.

O PRR está atualmente em consulta pública e pode, por isso, ser melhorado. E faço votos que assim seja. Há, no entanto, alguns sinais de preocupação. Dou apenas alguns exemplos.

Em primeiro lugar, é inegável que deve haver uma aposta em respostas sociais para mitigar a reconhecida pobreza e exclusão social que ainda são muito significativas no nosso país. Mas grande parte das soluções que o PRR oferece passa pela infraestruturação. E se para o investimento inicial há agora financiamento, a questão que se coloca é sobre o aumento de despesa pública na sua manutenção nos anos seguintes, altura em que já não haverá bazuca europeia para nos valer. Diga-se, ainda, que parece não haver uma estratégia clara relativamente às pessoas de idade: se numa leitura inicial parece haver uma aposta nas ERPI – Estruturas Residenciais para Pessoas Idosas, em detrimento do reforço da autonomização com uma aposta nos apoios domiciliários, mais à frente, o caminho a seguir parece ser outro. E aqui lembrei-me da frase de Lewis Carroll: para quem não sabe onde vai qualquer caminho serve.

Em segundo lugar, apresentam-se metas mais ambiciosas do que metas já anteriormente definidas e cuja concretização falhámos recentemente. Recordo que Portugal chegou a 2020 sem conseguir cumprir a meta de 40% de diplomados entre os 30 e os 34 anos, definida pela primeira vez em 2010. Apesar disso, e mesmo não tendo havido uma análise séria da parte da tutela sobre as razões que explicam esse nosso falhanço, define agora o PRR a meta de 50% para daqui a 10 anos, quando acabámos por falhar a meta do ano passado.

E o terceiro exemplo que destaco é o compromisso assumido pelo PRR de reduzir a segmentação do mercado de trabalho, mas sem dizer como, apenas recorrendo a um conjunto de generalidades, como sejam a valorização da formação e da qualificação ou a defesa de salários adequados. O PRR consagra, de facto, financiamento para a contratação permanente, mas continuamos a ser um dos países com um mercado de trabalho mais rígido, apesar dos méritos da reforma laboral de 2012. É fundamental aproximar a regulação dos diferentes tipos de contratos para reduzir a segmentação do mercado de trabalho. Curiosamente, o discurso do PS, e as recentes alterações por si promovidas, vão exatamente no sentido contrário, ao reforçar a rigidez laboral.

Registo, por fim, mais dois aspetos postos em evidência no PRR. O primeiro é um evidente problema de planeamento e de priorização: o Governo, que nos últimos cinco anos fez dos manuais escolares gratuitos a sua bandeira na Educação, abandona agora o papel e sustenta a aposta nos conteúdos educativos digitais. Foi necessária a pandemia para o Governo perceber qual é que devia ter sido a aposta nos últimos cinco anos? O segundo aspeto tem a ver com a incapacidade de avaliar as políticas públicas: as medidas de combate à pobreza apresentadas e que são a continuação de medidas já implementadas – avaliou-se o seu impacto? Tem de haver uma avaliação das políticas públicas e não é preciso criar mais observatórios para o efeito.

Não pretendo ser alarmista com o título escolhido para este alerta. Mas, pior do que o alarme é a desvalorização do problema. Não são só as armas que matam. As desigualdades também. Não deixa, por isso, de ser paradoxal o nome por que esta ajuda financeira é conhecida: bazuca.