1. Vamos ser claros: o Presidente da República geriu com os pés todo o processo de nomeação do procurador-geral da República. Pode ser um génio político, um exemplo raro da inteligência humana e um homem que tem conseguido recolher a admiração de todos os quadrantes da sociedade portuguesa mas neste processo falhou. E falhou de forma clamorosa, fazendo relembrar as ‘marcelices’ de outros tempos em que era tão inteligente, tão inteligente que até tropeçava na sua própria inteligência.

Marcelo Rebelo de Sousa não foi um Presidente da República. Foi mais um daqueles notários que validam qualquer assinatura do que um Presidente ciente do seu poder de nomeação num dos raros processos em que o Chefe de Estado tem realmente poder constitucional de influenciar a escolha do Governo. Para o bem e para o mal, Marcelo foi cúmplice da revanche do PS de António Costa e Carlos César contra Marques Vidal — e ficará colado ao sucesso ou ao insucesso do mandato de Lucília Gago. Que não haja dúvidas sobre isso.

Explicando por partes. O mais extraordinário em todo o processo não foi a nomeação de uma substituta de Joana Marques Vidal, nem foi o nome da própria substituta. Foi a forma como Marcelo explicou ao país que nunca tinha ouvido falar, não conhecia e nem se recordava de Lucília Gago como sua aluna*. Estas declarações, por si só e interpretadas literalmente, são um atestado da sua própria insignificância e até irresponsabilidade política.

Por duas razões:

  • A escolha do procurador-geral resulta de uma negociação entre quem propõe (o Governo) e quem nomeia (o Presidente). Se quem nomeia não teve o mínimo cuidado de, pelo menos, conhecer a pessoa indigitada, seguindo uma prática que se verificou com os seus antecessores, ou recolher informações sobre a mesma, então é porque tem uma confiança cega no primeiro-ministro;
  • Escreveu Marcelo na sua nota de indigitação que Lucília Gago irá seguir linha de “continuidade do combate à corrupção e da defesa da Justiça igual para todos, sem condescendências ou favoritismos para com ninguém”.  Mas como pode Marcelo garantir tal matéria se nem conhece a pessoa que indigitou? Tem a certeza que a dra. Lucília Gago não só tem essa capacidade, como, acima de tudo, faz a mesma leitura de prioridades que o sr. Presidente? É que a nova procuradora-geral pode entender que existem outras prioridades no seu novo cargo. E tem legitimidade constitucional para defini-las.

Resumindo e concluindo: era perfeitamente dispensável a ‘marcelice’ de tentar descolar de Lucília Gago.

2. Diz Marcelo agora que sempre defendeu o “mandato único” para o cargo de PGR. E porque não disse nada sobre a matéria quando a ministra da Justiça lançou o debate em janeiro? Ou meses mais tarde? Não se compreende porque razão o Presidente deixou ‘rolar’ a ideia da recondução se o seu pensamento era tão cristalino. Logo este Presidente — um homem com uma capacidade de comunicação fora do comum.

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Quem conheça minimamente a atual procuradora-geral, sabe que esta nunca teria mostrado disponibilidade para um segundo mandato se Marcelo lhe tivesse dito de forma clara que era a favor do mandato único. O que deixa a dúvida: houve aqui outra ‘marcelice’?

3. António Costa e a sua ministra Francisca Van Dunem são os grandes vencedores de todo este processo. Porque mantiveram-se coerentes e coesos desde o início, invocando um argumento jurídico (o mandato único) para legitimar um objetivo político claro: afastar Joana Marques Vidal.

Os silêncios em política não acontecem por acaso — e António Costa aplicou essa máxima em dois momentos do processo de substituição.

O primeiro momento foi a forma seca como o primeiro-ministro se limitou a agradecer o trabalho de Marques Vidal, sem referir um único elogio ao seu mandato. O que diz bem da consideração que Costa tem pelo trabalho que tem sido feito pelo Ministério Público (MP) e à qual não deve ser alheio o caso das viagens do Euro 2016 que fez com que Costa perdesse três secretários de Estado de uma só vez, sendo que dois deles eram próximos do primeiro-ministro (Fernando Rocha Andrade e João Vasconcelos); ou o maior “irritante” entre Portugal e Angola desde os tempos dos Acordos de Paz de Bicesse chamado caso Manuel Vicente, investigado por um departamento que depende diretamente da procuradora-geral.

Nem vale a pena referir a Operação Marquês, tão óbvia que é a insatisfação do velho PS com a ‘liberdade’ que Joana Marques Vidal deu aos procuradores do DCIAP. Isso é algo imperdoável porque o PS profundo não gosta que se metam com os seus. Não foi, aliás, por acaso que Carlos César foi a principal cara do PS contra a recondução de Joana Marques Vidal. Trata-se do presidente do partido, a voz que representa todos socialistas e a “proteção dos ‘nossos’”, como já escrevi nesta coluna. António Costa preferiu apoiar essa linha.

O segundo momento é ainda mais inexplicável à luz do apoio de Marcelo Rebelo de Sousa ao Governo. Na sua proposta formal de apresentação do nome de Lucília Gago perante Marcelo Rebelo de Sousa, António Costa é totalmente omisso quanto às prioridades que devem ser seguidas pela nova procuradora-geral da República. Limita-se a assinalar, de forma muito vaga, que a proposta do Governo tem como objetivo a “continuidade da ação do Ministério Público”. Não há, portanto, uma única referência à necessidade de continuar o combate à corrupção ou a defesa de uma Justiça igual para todos que Marcelo fez questão de assinalar na sua nota de indigitação.

Também aqui não pode haver dúvidas: Marcelo foi cúmplice da estratégia do Governo de afastar Joana Marques Vidal — e sem se perceber bem porquê e para quê, porque aparentemente a visão do Governo para a Procuradoria-Geral da República não aparenta ser a mesma que a do Presidente.

4. Isto, contudo, não significa que o PS de António Costa vá repetir as práticas de controle político do MP seguidas por José Sócrates durante os seis anos em que esteve no poder. Isso não vai acontecer.

A autonomia dos procuradores está devidamente consolidada e faz parte da cultura do corpo do MP. Por outro lado, o escrutínio da comunicação social nesta área é hoje muito mais intenso do que era no tempo, por exemplo, do procurador-geral Fernando Pinto Monteiro em que só uma minoria da comunicação social escrutinava seriamente a sua ação. Se existir alguma espécie de recuo durante o mandato de Lucília Gago, o mesmo será denunciado sem apelo nem agravo.

O que dizer sobre Lucília Gago? Para já, nada. Ou melhor: é um grande ponto de interrogação. Tal como Joana Marques Vidal, a nova procuradora-geral tem pouca experiência da área penal, tendo como área de referência também a família e menores. Teremos seis anos para verificar se estará à altura das circunstâncias.

Uma coisa é certa: será a procuradora-geral da República mais escrutinada de sempre.

“Devo dizer que não conheço pessoalmente [Lucília Gago] e que não retenho… como não conheço pessoalmente, não me recordo de ter sido minha aluna. É possível que tenha sido mas não lembro”. (Marcelo Rebelo de Sousa, “Jornal da Noite” da SIC, 21/9/2018)