Um dos truques mais tentadores na política consiste em lançar anúncios de apoios ou promessas de reforços orçamentais pelas várias áreas sectoriais. Chega a ser irresistível: como ninguém gosta de ouvir falar em cortes, os governantes desdobram-se a anunciar mais dinheiro a cada vez mais gente, para depois difundir notícias sobre essas iniciativas e gerar uma percepção positiva sobre o seu desempenho. E, se for preciso, depois cortam mesmo o orçamento a eito. Muitas vezes, a diferença entre o que se diz e o que se faz parece um abismo, pelo que importa escrutinar e procurar respostas à pergunta: afinal, os anúncios passaram a realidade?

Na análise de medidas políticas, uma abordagem para responder a esta pergunta está na distinção entre o dinheiro prometido (a dotação inicial) e o dinheiro efectivamente utilizado (o montante executado). O raciocínio é simples: se o governo anunciar uma medida de apoios que custa 50 milhões de euros, mas executar apenas 10 milhões de euros, importa perceber porque guardou o dinheiro no cofre. E, quando esse desalinhamento é surpreendentemente enorme, torna-se legítimo concluir que houve uma deliberada manipulação dos valores para fins de marketing político.

Aqui vai um exemplo. Se olharmos para as dotações iniciais para bolsas de estudo no ensino superior (acção social directa), constatamos que, entre 2015 e 2021, mais do que duplicou: entre 119 milhões de euros (2015) e 243 milhões de euros (2021), o aumento foi de +104%. Aliás, a partir de 2018, o reforço orçamental subiu em flecha: de 2018 (143 milhões de euros) para 2021 (243 milhões de euros) observou-se um aumento de 100 milhões de euros na dotação inicial, atingindo valores nunca antes alcançados, e que tanto orgulharam o então ministro Manuel Heitor — que salientou o carácter “inédito” do reforço da acção social naquele que qualificou de “melhor orçamento” dos últimos anos. Mas será que é mesmo assim?

A história muda radicalmente se, em vez de se analisar a partir das dotações iniciais (o dinheiro prometido), a análise for feita com os dados dos montantes executados (o dinheiro efectivamente gasto). Hoje, em 2023, essa análise já é possível de fazer quanto a 2021, o ano em causa. E os números são reveladores. É que, apesar de a dotação inicial aumentar +104% entre 2015 e 2021, o montante executado diminuiu -8,8%. E repare-se no intervalo temporal de 2018 a 2021: enquanto a dotação inicial aumentou em +100 milhões de euros, o montante executado caiu -16 milhões de euros. Sim, é mesmo extraordinário constatar o desfasamento entre o discurso de Manuel Heitor e a realidade. Afinal, o governo (que alegadamente bateu recordes históricos de investimento no apoio aos estudantes) apresentou montantes executados inferiores aos de 2015, o último ano do governo PSD-CDS, ou inferior até a qualquer um dos anos da geringonça.

A tendência mantém-se mesmo quando aplicada a toda a acção social no Ensino Superior, juntando às bolsas as despesas com alimentação, alojamento e outros apoios: em 2021, o montante executado foi inferior ao de 2015 (-22 milhões de euros), mesmo se nas dotações iniciais constava um espectacular aumento de +129 milhões de euros. É uma nova espécie de novilíngua: no governo, prometer enormes aumentos corresponde, afinal, a aplicar cortes. E para quem quiser confirmar com os seus próprios olhos, tanto estes como os números acima têm fonte nos organismos oficiais e estão compilados na PORDATA.

Enfim, confio que, nas mãos do actual Secretário de Estado do Ensino Superior Pedro Teixeira, esta pouca-vergonha orçamental tenha fim. Mas o caso serve de exemplo de uma actuação que vai muito além do Ensino Superior. Na semana passada, expus dados que provam como, nos últimos 20 anos, aumentou a população em risco de pobreza e dependente de apoios do Estado. Esta semana, pareceu-me oportuno lembrar isto: Portugal não é apenas um país onde aumentou a dependência da população nos apoios sociais para fugir à pobreza, é também um país que gera expectativas enganadoras sobre os apoios que o Estado presta às populações carenciadas — prometendo-lhes aumentos quando lhes aplica cortes, sem ninguém protestar. Portugal é um multiplicador de pobres também por isso: na sua iliteracia financeira, escrutina pouco e escrutina mal os seus governantes.

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