No âmbito da discussão sobre o atual e novo aeroporto de Lisboa, é historicamente chamado à colação o papel do Aeródromo Municipal de Cascais (AMC), situado em Tires. Esta infraestrutura ganhou relevo recente como a solução para receber todo o tráfego de aviação executiva que atualmente opera no Aeroporto de Lisboa. Associa-se essa decisão à exclusão do AMC de outros operadores, enquanto se invocam argumentos da mais diversa ordem, desde técnicos, financeiros, políticos, e mesmo ambientais. Entendo que esta visão assenta em alguns equívocos e, a bem de uma decisão consciente e informada como se impõe a qualquer decisor público, pretendo dar o meu contributo para essa ponderação.

Nas décadas que já levo de ligação à aviação geral — e como piloto que há mais de 25 anos utiliza este aeródromo — fui assistindo ciclicamente a “ímpetos refundacionais” do AMC, que sempre falharam por esta infraestrutura não ter nem vocação nem capacidade técnica para ser muito diferente do que é atualmente.

Com efeito, o AMC foi inaugurado em 1964 como aeródromo de aviação geral, ou seja, dedicado exclusivamente à aviação civil não comercial, que tipicamente utiliza aeronaves de menor porte. Assumiu esse papel para a capital portuguesa, à semelhança do que se passa em qualquer cidade da dimensão de Lisboa onde, paralelamente a um aeroporto dedicado à aviação civil de transporte regular, existe um aeródromo que alberga a aviação geral em todas as suas componentes: desde a aviação executiva, passando pela formação ligada a escolas de voo, ou ainda à aviação privada e de lazer e às várias facetas do trabalho aéreo. No AMC, a percentagem de movimentos de aviação geral de pequeno porte foi sempre esmagadora (cerca de 90%), e a aviação executiva de pequeno e médio porte (a de maior porte nem sempre consegue ali operar) representa a pequena fatia sobrante.

Por outro lado, esta fórmula de convivência das várias facetas da aviação geral é a única que historicamente assegura a viabilidade económica deste tipo de infraestruturas. Os operadores locais geram receitas relevantes (taxas de aterragem, estacionamento e ocupação de espaço aeroportuário) e viabilizam também atividades comerciais como o abastecimento de combustível, a manutenção de aeronaves, os espaços de restauração e hotelaria, etc… A criação de emprego e a dinâmica económica associada é indiscutível, sendo evidente a inviabilidade de alguns aeródromos onde se registou quebra destas componentes, como reconhecerão algumas autarquias em Portugal. Isto sendo certo que assume especial relevo na equação da viabilidade financeira de um aeródromo o papel das escolas de voo, desde logo porque um pequeno Cessna a praticar aterragens com alunos durante toda uma tarde gera mais receita ao aeródromo do que um jato executivo.

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Assisto, por isso, com preocupação às diretrizes políticas que vêm sendo anunciadas para o AMC, porque correspondem a uma visão que reputo de equívoca e desconhecedora da realidade da aviação geral. Especialmente gravosa parece-me a decisão de pretender afastar do AMC as escolas de voo, para se consagrar o AMC à aviação executiva que ainda voava para o Aeroporto de Lisboa, num exercício pleno de imprecisões e em grande parte inviável. Eis porquê:

  • Em primeiro lugar, o AMC já recebe atualmente cerca de 70% de toda a aviação executiva com destino a Lisboa. Se for possível tecnicamente (como adiante se verá, nem sempre será), não será difícil ao AMC acolher os cerca de 7 movimentos/dia que ainda operam no Aeroporto de Lisboa. Até porque este ano o AMC acentuou uma diminuição de movimentos (menos 8.000 face a 2022, especialmente por via da saída do AMC de uma escola de voo), o que também acarreta a correspondente diminuição de receita em taxas. Aliás, os decisores políticos têm obrigação de explicar como vão equilibrar esta equação, e não avolumar a transformação de um aeródromo dinâmico num deserto.
  • Em segundo lugar, o AMC tem limitações orográficas e de envolvente inultrapassáveis, que impedirão o acolhimento de toda a operação de aviação executiva. A pista única do AMC foi aumentada até ao seu limite na década de 90 (a norte e no eixo da pista está o inultrapassável monte de Manique e, a sul, uma enorme densidade habitacional, dependente de dispendiosas expropriações). Sem um aumento no comprimento da pista, esta continua a não permitir que aeronaves de aviação executiva de maior porte consigam descolar com carga e combustível adequado às suas missões. E mesmo quanto à sua largura, a pista do AMC é estreita, não respeita as margens legais de afastamento e segurança a edificações para aeroportos, e não tem caminhos de circulação adequados a algo maior do que uma pequena “avioneta”.
  • Em terceiro lugar, mesmo que fosse possível redimensionar o AMC, ultrapassando o que acima se disse (o que é impossível ou absurdamente dispendioso), o AMC nunca conseguirá ser um aeródromo normal para operação em mau tempo. Nesses dias, a pista tipicamente em uso será a 17, com orientação para sul, o que obrigaria a ter uma aproximação de precisão nesse sentido. Ora, esse tipo de aproximação por instrumentos não é tecnicamente viável (como nunca foi até agora) por via da existência do monte de Manique e também do espaço aéreo militar de Sintra, a norte. O AMC vem sobrevivendo com uma aproximação de precisão apontada a norte (pista 35) seguida de uma manobra difícil e de eficácia limitada para um circuito visual e aterragem na pista 17. Com o teto de nuvens e visibilidade mínima permitidos nessa aproximação, o que vem ocorrendo (e não se alterará) em qualquer dia mais invernoso, é que nenhum tráfego conseguirá entrar no AMC, tendo de alternar para o aeroporto de Lisboa ou outro.
  • Em quarto lugar, a convivência de um aeródromo como o AMC com a sua envolvente populacional é mais favorável no quadro atual do que o transformando num aeródromo quase exclusivo de aviação executiva. Cada movimento destas aeronaves (quase todas com motores a jato) tem uma pegada ambiental equivalente a várias aeronaves de pequeno porte, tanto no que respeita a emissões como ruído, e mesmo o histórico de acidentes graves é menos penalizador das aeronaves de menor porte.

Em conclusão, anseio por uma correção de rumo no desígnio do AMC, não repetindo erros e equívocos do passado, e alcançando-se soluções razoáveis e viáveis para todos os operadores do aeródromo. Só assim entendo que será possível obter o contributo do AMC na situação aeroportuária de Lisboa, onde importa recordar, existem dois aeroportos civis (Lisboa e Tires) e três aeródromos militares (Sintra, Montijo e Alverca), mas em que aparentemente faltará ainda construir mais infraestruturas. Sendo que esta última temática, infelizmente, não cabe neste artigo.