Nuno Palma, meu estimado colega historiador, decidiu 150 anos depois, retomar o tema de Antero de Quental nas Conferências do Casino. Na versão novecentista falava-se das causas da decadência peninsular. Na versão atual fala-se de fatores do nosso atraso económico. Porém, hoje como ontem, o ponto de referência era o resto da Europa. E, ontem como hoje, o tema suscitou inevitável polémica. Falar-se de causas do atraso é um tema histórico, pois remete para uma análise negativa do percurso do nosso país durante um determinado período. Falar de atraso é também um tema político – implica apontar culpas e até culpados pelo mau caminho tomado, bem como receitar remédios e médicos para curar o país doente. O tema é tanto mais quente quanto Nuno Palma o liga diretamente ao impacto (a seu ver, em última análise, negativo) dos subsídios recebidos por Portugal como membro da União Europeia. E isto no contexto de uma nova leva de apoios, os famosos 16 mil milhões de euros do plano de recuperação pós-Covid-19. Tem razão Nuno Palma? Tenho dúvidas quanto à sua tese, mas distintas das dos críticos mais vocais.

Críticas ao que não foi dito e a intenções ocultas

Foram várias as críticas a Nuno Palma, desde as relativamente normais, face a uma tese provocadora e com alvos atuais bem vivos, até às que que o transformaram num apologista encapotado do regime autoritário salazarista. Quem conhece Nuno Palma, ou se tenha dado ao trabalho de ouvir a sua intervenção no encontro do MEL e o que escreveu depois, não pode de boa fé defender essa ideia. Ele deixou bem claro que não tem qualquer simpatia pela ditadura de Salazar. E quem conhece a história do Estado Novo – como é o caso de Fernando Rosas – sabe que não merece discussão factos como o de o regime salazarista ter presidido a um dos períodos de crescimento económico mais acelerado da história portuguesa, convergindo economicamente com o resto da Europa, ou que foi de grande eficácia no combate ao analfabetismo infantil.

Particularmente infeliz foi a postura de José Pacheco Pereira que se queixa de ser caricaturado como “grande educador” mas parece, paradoxalmente, querer enfiar essa carapuça. Manda ler livros, manda estudar antes de se atreverem a debater com ele, mas está certo (e raramente tem dúvidas?) de que nada aprenderão com isso.

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Pacheco Pereira parece sobretudo insistir na rejeição de qualquer legitimidade no debate público para a área política em que se situa Nuno Palma. Porém, importa reconhecer que Pacheco Pereira esboça um argumento mais substantivo. Sublinha que, tal como no Estado Novo, também na Alemanha nazi a economia e os salários cresceram. Aparentemente deduz que ninguém se lembraria de usar esse caso como relevante em debates em curso na História económica – só o Holocausto contaria na história alemã deste período. Ora, a verdade é que a economia da Alemanha nazi é usado com caso exemplar em debates de história económica sobre a melhor forma de lidar com grande depressões. Citando precisamente os números de crescimento a que alude Pacheco Pereira argumenta-se que esse caso, mas também os EUA de Franklin Roosevelt, mostram que o problema central da Grande Depressão de 1929 foi a falta e não o excesso de intervenção do Estado! Estes dois casos mostrariam que a Grande Depressão só foi remediada quando os limites habituais da intervenção estatal na economia foram ultrapassados por causa do rearmamento e do esforço de guerra – seja no regime violentamente genocida de Hitler ou fortemente progressista de Roosevelt.

É da essência da boa História conseguir fazer uma análise crítica desapaixonada, que olha para diferentes dimensões sem se deixar condicionar por simpatias políticas ou ideológicas. Hoje, essa visão da História parece estar ameaçada por várias boas causas, mas para mim continua a ser válida e valiosa. Numa democracia todos têm direito à militância política – inclusive os historiadores, sejam de esquerda ou de direita, e é natural que esta influencie até certo ponto a sua agenda de investigação. Mas os grandes historiadores – de esquerda ou de direita – são os que resistem às certezas fáceis da sua ideologia preferida.

As minhas dúvidas com a tese de Nuno Palma

A tese de Nuno Palma está em linha com as de Antero Quental: o fator decisivo do nosso relativo atraso face à Europa mais desenvolvida tem sido sobretudo institucional. Para estes autores temos tidos as instituições políticas erradas. Coincidem em ver no Absolutismo, no Estado centralizado, na relativa decadência do nosso Parlamento tradicional (as Cortes) o problema fundamental. Parece-me que é uma tese demasiado simplista para um problema demasiado complexo.

Concretamente, quanto ao que afirma Nuno Palma, há que destacar que ele parte dos dados mais recentes da história económica portuguesa quanto à evolução do PIB em que ele próprio trabalhou com Jaime Reis, Pedro Lains e outros. Mas independentemente da importância inegável desses trabalhos, importa uma nota de prudência com a dificuldade crescente em ter dados quantitativos fiáveis para períodos mais remotos. Os dados citados também não me parecem apontar de forma inequívoca para que a grande rutura date do arranque do absolutismo e do oiro do Brasil. Em 1750, no pico desse modelo económico e político, que permitiu a D. João V dispensar as Cortes e os seus impostos, Portugal parece estar relativamente bem na tabela das economias europeias. Um candidato tanto ou mais crível para a grande rutura parece-me ser o contexto de guerras externas e internas no início do século XIX – desde as invasões francesas, um dos episódios bélicos mais destrutivos da história nacional, em que os dois lados praticaram uma política de terra queimada, até à grande guerra civil da nossa história, entre liberais e absolutistas (1832-34), e uma longa e violenta instabilidade que se estende até meados do século XIX. A isto acresce a total ausência em Portugal dos recursos estratégicos que alimentaram a dita Revolução Industrial – como o carvão. Tanto ou mais do que da “Dutch disease” (má gestão de recursos naturais abundantes), Portugal parece ter sofrido de um “conflict trap”, ou seja, da armadilha dos conflitos paradigmaticamente explicada por Paul Collier, antigo economista-chefe do Banco Mundial, na sua obra Bottom Billion, como uma das principais causas da pobreza no mundo. Posso estar errado, mas creio que é uma alternativa que, no mínimo, merece mais estudo.

A maior fragilidade da tese de Nuno Palma, que escapou à maioria dos seus críticos mais ocupados em lhe atribuir uma agenda oculta, parece-me ser esta: se a explicação institucional – a ausência de instituições liberais – é o fator por excelência do atraso português, como se explica que o Portugal Liberal do século XIX não tenha conseguido melhores resultados económicos? E, sobretudo, como explicar que o Estado Novo – um regime ditatorial, como Nuno Palma reconhece – possa ter sido o motor do mais acelerado crescimento económico português contemporâneo? Salazar tinha certamente mais poder e mais controlo do que alguma vez teve D. João V. Uma forma de salvar a tese seria pensar que Portugal cresceu economicamente, como defende Fernando Rosas, apesar e não por causa do regime salazarista, em particular por via de circunstâncias externas muito favoráveis. Em face da sua tese como explica Nuno Palma o extraordinário crescimento da China nas últimas décadas? Afinal, este é, provavelmente, o dado central da economia política do nosso tempo. Importa também sublinhar que quer o regime comunista chinês quer o regime salazarista português eram, como todos os sistemas autoritários, muito propícios ao tráfico de influências e à corrupção. A mim parece-me que, infelizmente, a bondade política de um regime não é garantia de forte crescimento económico. Este último parece ser possível em praticamente qualquer regime político que crie um grau elevado de segurança para investimento novo e inovador, sobretudo se tiver um contexto externo também favorável. Outra coisa bem diferente é um nível elevado de desenvolvimento equitativo e de qualidade de vida no conjunto da população – algo manifestamente ausente na China comunista de hoje, e no Portugal salazarista de ontem, mesmo que a pobreza extrema tenha diminuído nos dois casos. Isso sim, parece ser exclusivo de países com grande qualidade de governação pública e privada, bem como elevado escrutínio público, como os da Europa nórdica.

Então com as instituições e os fundos europeus tudo bem?

Para concluir, quer isto dizer que me parece que está tudo bem com as instituições portuguesas e na relação dos portugueses com os fundos europeus? Não. Aliás, parece-me que a minha crítica vai até mais longe do que a de Nuno Palma. Não me parece que o problema resida apenas nos partidos ou governos de esquerda, ou no Estado. É mais amplo do que isso.

O nosso problema fundamental é de uma crónica má governação em muitas das nossas instituições públicas, mas também em muitas das nossas instituições privadas. Ela resulta, por exemplo, numa enorme incapacidade de prever e antecipar problemas e de os transformar em oportunidades de inovação. Num extremo conservadorismo corporativista que torna qualquer mudança muito difícil. E ainda num peso enorme do clientelismo que quase anula o mérito. Ou ainda num culto do desenrascanço – que tem a sua utilidade, mas também muitas limitações. É isso que explica que ministérios, partidos e muitas empresas não tenham verdadeiros gabinetes de estudos e planeamento, pareçam estar sempre a improvisar planos e a ter uma postura puramente reativa.

Para ser justo creio que existem algumas ilhas de excelência no setor privado, e também no setor público que certamente ajudam a explicar o paradoxo central da história de Portugal nestes últimos dois séculos: o dos progressos do atraso, na expressão feliz de Pedro Lains. O nosso país continua relativamente atrasado face aos países mais desenvolvidos e ricos do Mundo (os do Norte da Europa), mas não deixa de os acompanhar, e, portanto, de se desenvolver, embora menos do que seria desejável.

E os subsídios europeus? Como creio que reconhece Nuno Palma eles ajudaram alguma coisa o país a desenvolver-se. Só quem não se lembra do que era viajar entre qualquer ponto de Portugal na década de 1980, pode achar o contrário. Certamente também se poderiam ter feito algumas opções diferentes e mais produtivas. Mas já sem espaço para poder desenvolver o  tema, há um ponto que me parece absolutamente evidente: não vamos sair da cepa torta enquanto os portugueses continuarem a perguntar insistentemente se será desta vez que novos subsídios europeus nos levam ao topo da tabela das economias europeias. A resposta é certamente negativa. Não foi por causa dos subsídios europeus que a Irlanda cresceu como cresceu. Foi porque os irlandeses desenvolveram um modelo económico, uma visão estratégica de inserção na UE e na economia mundial, bem ajustada, e que ia muito para além dos apoios europeus. AIrlanda continuará no topo da tabela na medida em que consiga ir antecipando problemas e oportunidades como o fizeram países como a Suíça ou Singapura, não maiores, nem mais dotados de recursos do que Portugal. Se há uma lição sólida da história é que não há modelos económicos ou governativos perfeitos, válidos para todo o tempo. As boas instituições públicas e privadas são as mais capazes de acomodar a mudança. E aí, começando com os partidos, passando pelo estado, mas também pelas empresas e as universidades, há muito trabalho a fazer.

Bruno Cardoso Reis (no twitter: @bcreis37), historiador, é um dos comentadores residentes do Café Europa na Rádio Observador, juntamente com Henrique Burnay, Madalena Meyer Resende e João Diogo Barbosa. O programa vai para o ar todas as segundas-feiras às 14h00 e às 22h00.

As opiniões aqui expressas apenas vinculam o seu autor.

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