Temos uma enorme capacidade colectiva para tentar ver facilidades onde não as há. Com isso, iludimos a realidade e adiamos até ao limite o momento em que temos de enfrentar o touro de frente. Nos últimos anos a narrativa política construiu vários mitos que ilustram isso mesmo. Aqui estão cinco deles:

A austeridade é apenas uma opção ideológica. A palavra tornou-se maldita ao ponto de muita gente puxar da pistola quando a ouve. Entende-se. Muitas famílias sofreram e sofrem com ela. Perderam-se empregos, rendimentos, casas, nível de vida. A narrativa simplista que foi sendo contruída é que o Governo aplicou a austeridade apenas por convicção ideológica, que podíamos ter passado sem ela e que há alternativas que nos livram desse mal. Não é verdade. Uma coisa é a austeridade. Outra coisa é esta austeridade em concreto, as medidas específicas que foram tomadas que tiveram mais impacto nuns do que noutros. A austeridade, esta ou outra com impacto semelhante nas contas públicas, era e continuará a ser um imperativo. Um sinal disso mesmo é a evolução que o próprio PS está a fazer. No início a austeridade tinha que acabar imediatamente e a dívida teria de ser renegociada, reestruturada ou o que lhe queiramos chamar. A alternativa que os socialistas diziam ter era uma alternativa à austeridade. Agora já percebemos que não é assim: o caminho que os economistas do PS apresentam não é uma política alternativa à austeridade, é uma alternativa de políticas dentro desta austeridade. Não é só um jogo de palavras, é uma diferença do dia para a noite. O PS quer repôr salários e acabar mais cedo com a sobretaxa do IRS. Em contrapartida, aumenta o IMI, não baixa o IRC e quer fazer regressar o imposto sobre heranças. E a redução do défice público será mais lenta do que previsto pelo Governo, o que quer dizer que o desagravamento mais rápido de algumas medidas de austeridade será pago com mais impostos no futuro. Claro. O dinheiro tem de vir de algum lado. A austeridade é uma opção que pode acabar amanhã? Faça-se este exercício. Reponha-se tudo – salários, pensões, subsídios, impostos – como os tínhamos em 2010 e veja-se até onde dispara o défice. Era tão bom que a austeridade fosse apenas uma teimosia política…

O crescimento consegue-se aumentando os rendimentos. Crescimento económico? É simples: coloca-se mais dinheiro no bolso das pessoas aumentando salários e pensões ou cortando impostos, elas começam a gastar, as empresas começam a vender mais e a economia cresce. É verdade que algum crescimento económico se consegue através do consumo e que este pode ser aumentado impulsionando os rendimentos. Mas estamos num contexto em que este estímulo é eficiente? E será esse crescimento sustentável e saudável? Um dos fenómenos mais curiosos dos últimos anos de crise foi o aumento da taxa de poupança dos portugueses. Mesmo com o aumento do desemprego e com o corte nos rendimentos, a população aumentou a poupança de forma assinalável. Porquê? Porque num ambiente de elevada incerteza e de receio sobre o futuro quem podia preferiu cortar no consumo e aumentar a poupança para o que desse e viesse. A confiança e a estabilidade do quadro económico e político são, por isso, fundamentais para transformar dinheiro na carteira em consumo. Depois há o passo seguinte, que é transformar consumo em crescimento económico… português. Porque se o consumo for direccionado sobretudo para produtos estrangeiros estaremos a ajudar mais os compatriotas da senhora Merkel do que os nossos, aumentando importações. O principal corte no consumo nos últimos anos ocorreu nos chamados bens duradouros – electrodomésticos, automóveis, electrónica. Se agora se passar o inverso a Mercedes, a BMW e a Bosch agradecem.

O Estado tem uma dimensão sustentável. Não há milagres. É importante recordar os conceitos básicos. O primeiro é que o dinheiro do Estado é o que é cobrado aos contribuintes; mais despesa pública significa mais impostos. Depois, a receita menos a despesa é igual ao saldo das contas do Estado. Ainda estamos longe de ter um Estado que gasta apenas aquilo que cobra, apesar dos brutais aumentos de impostos e dos cortes feitos em salários, pensões e outra despesa. Quem acha que o Estado actual já está numa dimensão adequada tem que explicar de que é que prescinde: de baixar impostos, repor salários e pensões ou de baixar o défice? É que não dá para fazer tudo. Se a brutal carga fiscal asfixia a economia, se os cortes de rendimentos são temporários e têm que ser repostos e se o défice tem de baixar porque há esse compromisso e faz sentido económico como é que se resolve a equação? Dava tanto jeito que as Finanças Públicas fossem uma ciência oculta…

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A Segurança Social é viável com pequenos ajustamentos. Há décadas que vivemos de remendos no sistema de Segurança Social para tentar driblar a realidade demográfica: fazemos cada vez menos filhos e vivemos cada vez até mais tarde. Já se alteraram as fórmulas de cálculo das pensões, cortaram-se reformas, introduziu-se o factor de sustentabilidade que, na prática, significa uma de três coisas: idade da reforma mais avançada, pensões mais baixas ou descontos mais altos. Nada disto foi em dose suficiente para tornar viável o mais popular sitema de Ponzi, em que os que entram pagam para os que saem. Há sempre várias propostas de medidas avulsas em cima da mesa para continuar a disfarçar o problema mas que não são mais do que aspirinas que escondem os sintomas durante um curto espaço de tempo sem combater a doença. Ninguém tem dúvidas que ou se muda o sistema nos seus alicerces ou vamos, num futuro que não é longínquo, ter direito a pensões muito mais baixas. Problema: qualquer transição para sistemas de capitalização individual custa muito, muito dinheiro. Ou se aceita pagar ou rebenta.

Basta melhorar a qualificação dos trabalhadores para a produtividade disparar. Porque é que numa hora de trabalho produzimos apenas 60% da média europeia e metade do que produz um alemão? Há décadas que os trabalhadores têm as costas largas para a fraca produtividade da econonima portuguesa. Foi em nome desse atraso que se gastaram rios de dinheiro, muitas vezes mal gastos e que foram parar a bolsos que não deviam, em programas do Fundo Social Europeu que deram a uma fatia assinalável da população cursos de informática inúteis. O certo é que muitas empresas, de capital nacional ou estrangeiro, conseguem com os mesmos recursos humanos portugueses índices de produtividade que comparam bem com os melhores do mundo. Qual é o segredo? Gestão de qualidade, chefias intermédias competentes, organização das empresas e do espaço de trabalho, sindicalistas que estão mais interessados na sustentabilidade equilibrada da empresa do que em mostrar serviço ao partido. Acabar com sectores acomodados que vivem de rendas e a salvo da concorrência global também ajuda. A política de mérito deve, aliás, começar por aqui.

Jornalista, pauloferreira1967@gmail.com