O decreto do Presidente da República para a renovação do Estado de Emergência abriu uma janela de oportunidade para as escolas montarem actividades online (a distância). Em bom rigor, a história não se conta assim. Essa janela de oportunidade sempre existiu, porque o decreto presidencial anterior não proibia as actividades à distância. Quem proibiu foi o governo, uma vez que o decreto saído do Conselho de Ministros da semana passada era claro, no seu artigo 2º, quanto ao objectivo de “suspensão das actividades lectivas e não lectivas”. Tal como a esse propósito foram esclarecedoras as comunicações do governo, nomeadamente do ministro da Educação, que até quase acusou as escolas privadas de oportunismo quando estas se recusaram a ficar paradas durante 15 dias. Ora, surpresa nacional, ontem à noite António Costa afirmou que “ninguém proibiu ninguém de ter o ensino online” — afinal, acredite quem quiser, houve 10 milhões de portugueses (incluindo ex-ministros e responsáveis do sistema educativo) que perceberam mal a decisão do governo e o seu decreto.

Marcelo enviou um sinal político de censura à proibição (imposta pelo governo) de as escolas funcionarem à distância neste período de confinamento. Esteve muito bem. Usou este novo decreto presidencial para esclarecer que, no quadro do Estado de Excepção, só o ensino presencial pode ser suspenso, e nunca actividades organizadas à distância. Assim, a intenção do governo caiu por terra. Ainda bem, porque foi autoritária e irrazoável. E, muito importante de o frisar, foi também inconstitucional.

Começo precisamente por este último aspecto. Há uma diferença substancial entre suspender actividades em regime presencial (o que se justifica por questões sanitárias) e interditar as escolas de terem actividades com os seus alunos à distância (o que não tem justificações sanitárias). A primeira é uma medida de emergência sanitária, a segunda é um abuso político. Ora, na medida em que a liberdade de aprender e ensinar (artigo 43.º da Constituição) não foi suspensa pelo decreto presidencial que enquadrou o Estado de Emergência em vigor, esta posição do governo estava ferida de inconstitucionalidade. Isto é inequívoco e nos últimos dias foi analisado e repetido por constitucionalistas de todos os quadrantes políticos. Mas há mais: importa não esquecermos que as medidas que emanam do Estado de Emergência estão justificadas pelos riscos sanitários existentes — ou seja, não há uma carta branca para o governo proibir arbitrariamente as actividades que não acarretam riscos para a saúde pública, como é o caso do ensino a distância. Por isso, devo dizê-lo: foi uma grande desilusão ver como tanta gente aderiu a esta proibição, passando ao lado do facto de ser inconstitucional. Podemos concordar ou discordar acerca dos objectivos das medidas, mas quando o cumprimento da Constituição fica sujeito à conveniência política é sinal que se passou uma linha vermelha. Felizmente, Marcelo Rebelo de Sousa veio resolver o bloqueio neste novo decreto.

Agora, resolvido o bloqueio, é urgente que as escolas públicas retomem contacto com os seus alunos e, a partir de hoje, lhes ofereçam sessões online de revisões e apoio à aprendizagem. Lembro que os alunos do ensino básico tiveram uma suspensão do ensino presencial entre Março e Setembro de 2020, sofrendo logo aí um pesadíssimo dano na sua aprendizagem. Quem reconhece a urgência de recuperar esse dano não poderia ficar tranquilo quando, perante a necessidade de suspender o ensino presencial, viu as escolas paradas. Todos os dias contam — até porque, arrisco dizê-lo, todos os dias não chegarão para recuperar os danos de aprendizagem já infligidos. Por isso, as alterações ao calendário escolar para maximizar o tempo de ensino presencial foram bem-vindas, mas a proibição de actividades à distância surgiu como um completo disparate. E a reversão desse disparate começa hoje.

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Conheço dezenas de escolas públicas que estavam preparadas e a postos para iniciar as suas actividades à distância, na semana passada, e cujas comunidades escolares ficaram frustradas pela decisão do governo, que as travou. Frustradas, precisamente, porque sabem o quanto os alunos precisam desse apoio, porque o seu atraso arrisca-se a ser irrecuperável, independentemente de posteriormente se ganhar dias de ensino presencial às férias. Em vez de o reconhecer, o governo alimentou uma falsa batalha entre escolas públicas e escolas privadas, o que será eventualmente útil para narrativas políticas, mas não poderia estar mais longe da verdade: sim, as escolas privadas quiseram manter actividades online, mas foram muitas as escolas públicas que também estavam preparadas para trabalhar à distância — e perceberam que tal hipótese lhes estava vedada. Já não está.

A única forma de recuperar o atraso na aprendizagem dos alunos nas escolas públicas é tendo actividades (como revisões, por exemplo) em curso. É uma evidência: o eventual atraso de alguns alunos não se recupera obrigando todos os outros a ficarem parados. De resto, efectivamente muitos alunos não ficaram parados: várias escolas privadas estão actualmente com actividades à distância. E, quase em segredo, houve directores e professores de escolas públicas em constante contacto com os seus alunos, esforçando-se para fazer o mesmo, embora com limitações institucionais maiores. Fizeram todos muito bem. E agora, assumidamente e às claras, mais se devem juntar a eles.

Deveria ter sido assim desde o início: confiar nas escolas e respeitar a sua autonomia. As escolas públicas que sentissem ser útil para os seus alunos, implementariam actividades de revisões e recuperação de aprendizagem nestes dias. Estariam todas em iguais condições de o fazer? Naturalmente que não. Mas a ideia de igualdade total entre escolas é utópica: em presencial ou a distância, as escolas têm condições diferentes, professores diferentes, alunos diferentes, projectos educativos diferentes, contextos e comunidades escolares diferentes. A igualdade radical não existe, mesmo que se a coloque por escrito num decreto-lei. Ora, as escolas trabalham todos os dias para encontrar soluções que, melhores ou piores, superam sempre o ficar-se parado. O aspecto perverso da decisão do governo esteve aí: pretender que convocou uma luta pela equidade, quando, na realidade, fez o maior ataque de que tenho memória à autonomia das escolas, impedidas de decidir quais as melhores soluções educativas para as suas comunidades estudantis.

O desafio (evitável) que se acumula agora, desde a última semana, não está tanto nas escolas privadas que, em muitos casos, optaram (e bem) por manter actividades online. O desafio está em todas as escolas públicas que gostariam de o ter feito e não puderam, deixando os seus alunos no limbo e, lá está, em desvantagem para com os restantes. Uma semana depois deste ataque às comunidades educativas, o novo decreto presidencial surge como oportunidade para milhares de alunos. Perdeu-se uma semana. Que não se percam duas — é esse o apelo que lanço aos directores escolares inconformados das redes pública e privada: aproveitem esta oportunidade para retomar as actividades e dar aos vossos alunos o apoio de que eles tanto necessitam.