Aquilo que se adivinhava quando se olhava mais para o que acontecia e menos para o que se dizia é hoje, com números, muito claro. O discurso de alívio fiscal, aumentos de pensões e apoios ocupava todo o espaço mediático sobre as contas públicas e sobrava pouco tempo – e vontade – para perceber o que de facto estava a acontecer.

E assim conseguiu o PS, com o apoio dos partidos à sua esquerda, aplicar orçamentos que reduziam as despesas sem grande alívio fiscal. E assim reduzir o défice público com todos a acharem que estavam melhor. É, de todos os pontos de vista, brilhante. E um tempo de governação que deve merecer o estudo da academia, confrontando o que se dizia com o que se fez.

Hoje já temos estatísticas que demonstram que o aperto orçamental acabou por ser tão significativo quanto o do tempo da troika. E aqui não se analisa o que se fez às empresas públicas, com os gestores totalmente manietados pelos decretos de execução orçamental. Nem se olha para as cativações.

Comecemos pelas despesas com pessoal. Em 2019, o último ano pré-pandemia, de acordo com os dados do INE, as despesas com pessoal da administração pública representavam 10,8% do PIB, o segundo valor mais baixo desde 2010 – o primeiro mais baixo também é um recorde de António Costa, em 2018. Nem o corte nos salários da função pública na era da troika conseguiu atingir este objetivo.

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Apesar desse extraordinário objectivo ter sido atingido, nem os funcionários públicos o sentiram nem os cidadãos em geral o perceberam. Ia-se vendo que isso estava a acontecer pelo aperto em que os serviços estavam, mas qualquer alerta nesse sentido era imediatamente engolido pelas violentas críticas que chegavam, tanto do Governo como dos partidos à sua esquerda que o apoiavam.

Pode argumentar-se que não se gastou em salários, mas os apoios sociais em contrapartida foram muitos generosos. Não é verdade. Os números também mostram que cabe a António Costa o recorde do mínimo de gastos em prestações sociais quando comparadas com a produção. Em 2019, as prestações sociais corresponderam a 18,1% do PIB.

Claro que um dos argumentos é a descida da taxa de desemprego – que permitiu reduzir os subsídios de desemprego. É verdade, em 2010 a taxa de desemprego foi de 10,8% da população ativa e em 2019 estava em 6,6%. Mas também significa que todos os apoios foram mais do que compensados pela redução dos encargos com subsídios de desemprego. Uma análise mais detalhada das contas da segurança social permitirá, seguramente, retirar conclusões mais finas.

As despesas com o pessoal e com prestações sociais representam cerca de 65% dos gastos das administrações públicas. Controlando esta despesa e ainda usando o investimento como uma espécie de variável de ajustamento, para o objectivo que se quer atingir, é meio caminho andado para se reduzir o défice público. E foi isso que se fez.

O investimento público nunca atingiu os 2% do PIB entre 2016 e 2019, quando na era da troika – não se incluiu o ano de 2011 –, nunca esteve abaixo dos 2%. Os governos de António Costa apenas aumentam o investimento com a pandemia. Mesmo assim e mesmo incluindo o que se prevê gastar este ano, a média dos sete anos de António Costa ainda são inferiores – marginalmente, é verdade, em uma décima – à do governo de Pedro Passos Coelho.

O apoio do Bloco de Esquerda e do PCP, explícito na primeira legislatura e implícito na segunda, entretanto interrompida, explicam parcialmente este sucesso. Os dois partidos à esquerda do PS, como várias vezes se disse aqui, funcionavam, até à Geringonça, como os denunciadores da inconsistência entre o discurso e a prática. Não o fizeram durante esses anos.

Além disso, a vida do BE e do PCP foi facilitada pela narrativa que envolvia cada Orçamento. Tal como acontece agora, em que vamos debater a proposta de Orçamento para 2022, os temas que o Governo repete são, entre os mais importantes, o alívio do IRS e o aumento das pensões. Todas as luzes estão orientadas para o que se vai dar, quando o que se dá é bastante inferior ao que se tira. Mas ninguém repara. Foi assim nos últimos seis anos e vai manter-se.

Só quando fazemos contas é que verificamos que, também em 2022, os principais contributos para a redução do défice chegam dos subsídios (via redução dos apoios da pandemia), das despesas com pessoal e das prestações sociais. O tempo dirá se também o investimento não irá contribuir para reduzir o défice público. Até porque o trabalho de redução da despesa é ainda importante, para que regresse aos níveis pré-pandemia, como aliás alertou o governador do Banco de Portugal.

Agora, com maioria absoluta, será mais fácil decidir e reduzir a despesa. O risco está na contestação social, já que o Governo não conta agora com o apoio do PCP – importante pela força que tem nas ruas e que vamos ver se mantém – nem do BE – importante pela influência que tem nos media. Mas o Governo não lhes está a facilitar a vida, seguindo a mesma receita. Quem pode afinal contestar um Orçamento que reduz impostos e aumenta pensões? O resto é tudo mais difícil de explicar, como a falta de contratações para as áreas necessárias e a perda de poder de compra dos funcionários, quando a maioria dos outros trabalhadores, no privado, enfrentam o mesmo. Até a ausência de investimento está em parte resolvida com os subsídios de Bruxelas.

Tem sido uma receita infalível e bem reveladora da incapacidade que o ser humano tem de lidar com a verdade. O objectivo nunca foi reduzir o défice, o objectivo foi sempre virar a página da austeridade, enquanto ninguém reparava que se estava e tem estado sempre na mesma página. Os fins justificam os meios, terá sido dito ao Príncipe. E assim se controla o défice público.