O que é que faz que os portugueses sejam tão bons como os melhores quando saem de Portugal e, em Portugal, tudo isto seja sempre a mesma vil e apagada tristeza? Ou seja, tenhamos qualidades e condições para ser um país rico, mas afundamo-nos na cauda da Europa, continuando a ser ultrapassados pelos recém-chegados?

Há uma explicação simples: tudo neste país está feito para as redes de amigos, não para os portugueses. Não é mal recente, mas é mal de que todos os dias temos notícia.

Se alguma virtude houve nestes anos de geringonça foi tornar claro que nada nem ninguém escapa à “Lei de Ferro da Oligarquia” descrita pelo sociológo alemão Robert Michels na sua célebre e influente obra de 1911, mas porventura num grau que nem ele imaginou: não só os aparelhos partidários tomaram conta dos partidos, como os partidos tomaram conta do Estado e dividem entre si os despojos.

Já não há virgens, porque já tivemos Ricardo Robles no Bloco e temos agora uma avalanche de histórias sobre uma rede vermelha de empresas que parasita as autarquias do PCP.

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Também deixou de haver pudor: este Governo não tem a menor das preocupações em seguir as regras da CRESAP e recorre sem decoro à figura do “regime de substituição” para fazer nomeações permanentes e colocar “boys e girls” como se não houvesse amanhã. Ao mesmo tempo que isto se passa no topo da administração pública, na base a operação de “integração dos precários” serviu as clientelas do Bloco e lugares que deviam ter sido preenchidos por concurso, foram preenchidos… porque sim.

Os nossos partidos são partidos do Estado, porque foi assim que a nossa democracia nasceu em 1974, e são partidos que ocuparam o Estado, porque sempre foi essa a sua cultura e velha de séculos a tradição de viver “encostado à Corte”.

Nestas décadas de democracia houve camadas que foram sendo colocadas sobre camadas e camadas sobre mais camadas, e a sofreguidão é infinita. Hoje nos partidos as carreiras fazem-se entre os lugares no Estado, os lugares políticos (incluindo as assessorias) e os contratos de fornecimentos de serviços ao Estado. É uma sarna que infesta a administração e um peso que a paralisa, pois vive a par com legislação que só existe para justificar a sua existência e complicar a vida dos cidadãos.

Como se isto tudo não fosse já suficientemente trágico, querem acrescentar-lhe a obscenidade da regionalização e, de caminho, já se vão aboletando com o que podem. Os gerontes do bloco central, que deviam recolher a penates e evitar sair à rua com vergonha do país que deixam às próximas gerações, apresentam-se agora como “sábios”, passeiam-se pelas televisões com pacóvios a reverenciá-los como “senadores”, e tomaram agora conta de uma dita “Comissão Independente para a Descentralização” que, vejam lá a coincidência, só integra defensores da regionalização.

A presidir à coisa está um dos portugueses que mais caro custou ao país nas últimas décadas, não pela venalidade que outros praticaram (bem pelo contrário, honra lhe seja prestada), mas pelas políticas desgraçadas que promoveu: João Cravinho. Basta dizer que foi ele o verdadeiro inventor das SCUTs e que teve um importante papel nas nacionalizações para termos uma ideia do passivo que deixou, mas mesmo assim não desarma e continua a ter mão leve quando toca a passar cheques: agora quer pagar 135 mil euros a Freitas do Amaral para um estudo sobre regionalização, pretende no total gastar em seis meses de “estudos” da sua comissão o orçamento de dois anos da Assembleia da República para esse tipo de trabalhos e, com a arrogância típica dos que se acham pais do regime, disse ao Expresso que não aceita que o Parlamento se recusa a pagar as contas que ele acha “razoáveis”.

Perguntar-se-á: mas por alma de quem se atura tal arrogância? A resposta é simples: os lugares que há para distribuir já não chegam, os partidos precisam de mais, a “descentralização” foi um número de circo ensaiado por Costa e Rio que correu mal porque não houve dinheiro para distribuir, pelo que agora só resta a fuga em frente. O Estado tem de ser maior para aplacar a sofreguidão dos nossos partidos.

Este Estado maior de que falamos nem sequer é um Estado com melhores serviços públicos. É apenas um Estado com mais empregos públicos (que são também mais votos enquanto as prioridades políticas foram aquelas que têm sido), mais lugares para distribuir e, o que é porventura ainda mais dramático, um Estado com mais regulamentos, mais serviços, mais capelinhas, mais labirintos para percorrer e para abafar a economia produtiva.

Quem quer que alguma vez na vida tenha tido de tratar do mais simples processo de licenciamento põe as mãos na cabeça só de ouvir falar de regionalização, pois sabe que, com mais ou menos conselhos de “sábios”, o resultado final será sempre mais uma camada de burocratas a complicar a vida dos cidadãos. Sempre foi isso que aconteceu no passado, porque haveria de ser diferente no futuro?

Não, não vai ser diferente. Porque ao lado dos “amigos” dos partidos, há os “amigos” dos negócios, os “lá de cima”. Querem um exemplo? Pensem em todos os que estão naquelas linhas apagadas do relatório da auditoria da Caixa Geral de Depósitos. Pensem no esforço que tem sido feito para que não se saiba tudo o que se passou no banco público. Recordem-se de como nesses negócios se misturaram banqueiros, grandes escritórios de advogados, lideranças partidárias, ministros e ex-ministros, empresários espertalhaços e por aí adiante, num caldo de cultura que só foi quebrado pela bancarrota e pela chegada da troika, e mesmo nessa altura certas lógicas só foram rompidas porque houve um primeiro-ministro que disse não a quem não estava habituado a ouvir negativas.

Custa muito ver, mas a verdade é que este circuito dos amigos “de cima” foi abalado mas está a recuperar, e só não estará de melhor saúde porque a nossa economia se abriu mais ao exterior e nos bancos já mandam sobretudo espanhóis e chineses, o que faz muita diferença – para melhor. Os de cá, os do costume, continuam a achar que é mais seguro contar com o favor dos ministros do que com o dos clientes.

Este Governo podia estar a ter a melhor política económica, que não está a ter, podia não estar a comprometer o SNS, podia não estar a dar cabo da meritocracia na escola pública, podia não estar a deixar cair aos pedaços a ferrovia, que mesmo assim podíamos ter esperança de vir a sacudir a pobreza secular. Mas quando tudo o que é feito vai no sentido de reforçar as características estatizantes, burocráticas e oligárquicas do país que somos, não temos esperança. Quando tudo é feito para abafar a diferença, impedir ideias novas, distorcer a concorrência, proteger os instalados, não temos senão um triste futuro.

Ora é precisamente isso que está a ser feito.

Por conveniência dos partidos, que têm de servir a ancestral fominha de lugares (é por isso, e por mais nada, que nada podemos esperar do PSD que temos, pois este verdadeiramente já só deseja umas sobras à mesa do Orçamento).

Por ideologia, pois a gerigonça atira a matar a tudo o que seja concorrência, iniciativa autónoma, possibilidade de sucesso fora das malhas estritas do que pode ser controlado pelo poder político.

Por tradição, pois um país que nunca soube construir instituições fortes e independentes tem imensa dificuldade em lidar com elas (e é ver como esta maioria geringonçal se tem encarregue de as desvitalizar ou controlar, sejam entidades reguladores, sejam instituições fiscalizadores, só não indo mais longe porque está manietada pelas regras europeias).

É revoltante, profundamente revoltante, verificar que quando o país precisa que descompliquem, que o libertem da camisa de onze varas que são regulamentos em cima de regulamentos e serviços e servicinhos cheios de gente a lutar pelo seu pequeno lugar de tiranetes da mais abstrusa interpretação legal (o que também favorece a pequena, média e grande corrupção), um conjunto de bonzos, cheios de arrogância, anda a conspirar para acrescentar ainda mais uma camada ao Estado e uma nova prateleira para colocar “boys” e “girls”.

É assim que garantimos a miséria do nosso futuro. Eles vão-se safando. Nós, como país, ficaremos sempre pobres. O resto serão sempre promessas vãs. Está nos livros porque falham as nações e nós fazemos questões de cometer todos os erros possíveis.