Como profissional da área de saúde acompanhei de perto os intrincados meandros dos grupos de trabalho e comissões relacionados com a reforma da saúde pública em Portugal. Desde o ano de 2016 até ao presente, fui testemunha não apenas da dedicação incansável dos colegas da Saúde Pública, que se empenharam nas várias comissões criadas, mas também da frustração crescente que permeia os corredores dos serviços de saúde pública. Ano após ano, as propostas foram apresentadas, debatidas e arquivadas.

Para contextualizar o leitor, vou relatar todo o percurso, que acompanhei e integrei, desde a criação da primeira Reforma da Saúde Pública Nacional, em setembro de 2016, até à mais recente Comissão para Elaboração da Proposta de Organização e Funcionamento dos Serviços de Saúde Pública, em abril de 2023. Entre estas datas, foram produzidos vários documentos e realizadas inúmeras reuniões. No entanto, a ação política efetiva, tão ansiada, permaneceu esquiva e ainda hoje a reforma da saúde pública, uma necessidade premente, permanece no limbo.

O desafio para que esta reforma da Saúde Pública se torne realidade, não reside na burocracia ou na falta de esforço dos profissionais envolvidos nos vários grupos da reforma. Pelo contrário, os profissionais de Saúde Pública, que participaram nos grupos ou comissões dedicadas à reforma da Saúde Pública, trabalharam incansavelmente, mesmo durante os anos de pandemia e frequentemente para além do horário normal de trabalho.

A tentativa de iniciar a reforma da Saúde Pública, surge com a publicação em Diário da República do despacho n.º 11232/2016, de 19 de setembro, assinado pelo Ministro da Saúde, que determinou a criação e estabeleceu disposições sobre a Comissão para a Reforma da Saúde Pública, com vista a promover uma discussão abrangente da Reforma da Saúde Pública, com todos os seus atores. Esta comissão, foi presidida pelo Diretor-Geral da Saúde, o Dr. Francisco George e constituída por representantes do Ministério da Saúde, das Administrações Regionais de Saúde, das ordens profissionais e das organizações sindicais da área da saúde, produziu a proposta de Lei 49/XIII/2, que caducou em 24-10-2019.

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Esta comissão integrou mais de 20 entidades e produziu vários documentos técnicos, que ainda hoje são considerados uma referência nacional, ao contemplar áreas específicas da saúde pública. Uma vez que o mandato desta comissão era de três anos, tendo em consideração não só a aprovação, da proposta de lei da Saúde Pública, mas também as implicações daí resultantes em termos operacionais, foram criadas por unanimidade três sub-Comissões.

Para cada uma das Comissões, foram consensualizados objetivos específicos de trabalho e definidos um cronograma para o ano de 2017. A 1.ª Comissão (Comissão Permanente), da qual também fiz parte, teria como principais objetivos assegurar a comunicação interna e externa, a articulação interinstitucional, coordenar os trabalhos das diferentes Comissões, assegurar o acompanhamento do processo de Reforma da Saúde Pública, incluindo a produção legislativa, e preparar e agendar as sessões plenárias.

A 2.ª Comissão (Comissão para a Contratualização, Sistema de Informação e Acreditação), da qual fui eleito coordenador, competia preparar o modelo de contratualização dos Serviços de Saúde Pública e os requisitos do Sistema de informação dos Serviços de Saúde Pública, tendo elaborado os seguintes documentos que passo a enumerar:

Contratualização dos Serviços de Saúde Pública Locais

Do documento anterior, surge a primeira matriz multidimensional para as Unidades de Saúde (USP) que foi adotada para as Unidades de Saúde Pública, no entanto ainda hoje, os Serviços de Saúde Pública em Portugal, não têm um processo formal de contratualização, apesar de se terem definidos e propostos indicadores à Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS). Como elemento da Comissão Técnica Nacional (CTN) reforcei este pedido, mesmo após o término da comissão. Assim, enquanto ex-Coordenador do Grupo da Reforma da Saúde Pública, solicitei autorização à Dra. Graça Freitas para encaminhar novamente à ACSS o documento com os indicadores de contratualização para as USP, tendo-o feito pela entidade que representava na CTN : Consultar a Ata da ACSS : Indicadores em Cuidados de Saúde Primários- Serviços de Saúde Pública.

Se muitos dos indicadores propostos tivessem sido implementados, a resposta da Saúde Pública à pandemia teria sido mais integradora, ágil e provavelmente teríamos registrado menos óbitos. Importa referir que os documentos de contratualização em Portugal enfatizam a importância de alinhamento com os “planos locais e nacionais de saúde” e o “diagnóstico de saúde local”. No entanto, desde 2018, existem propostas de checklists para estes documentos, mas que nunca foram implementadas. Se o fossem garantia-se que as Unidades de Saúde Pública (USP) tivessem um indicador de contratualização anual e que os planos locais de saúde fossem sejam atualizados, comparáveis e uniformes em todo o país. Apesar de desde o ano de 2018, terem sido estabelecidos os Requisitos Mínimos para a Contratualização dos Serviços de Saúde Pública Locais e de se ter desenvolvido uma Proposta de Modelo de Contratualização dos Serviços de Saúde Pública Locais, acompanhada por uma Matriz de Contratualização que detalha áreas, subáreas, dimensões e ponderações relevantes para avaliar e monitorar os serviços de saúde pública locais, nada foi implementado e os indicadores para as Unidades de Saúde Pública não foram desenvolvidos. Destaco ainda os documentos seguintes, também produzidos por esta comissão, que não foram implementados. Um deles é o Modelo Conceptual-Operacional Sistema de Informação e Comunicação em Saúde (SICS), que recebeu amplos elogios na altura da sua publicação e o documento que define as “Instalações e equipamentos para Serviços de saúde pública locais” que pode ser consultado online.

Por último, a 3.ª Comissão, conhecida como Comissão para a Organização e Capacitação, elaborou os seguintes documentos:

1.Modelo de rede de serviços de saúde pública e seu funcionamento (consultar aqui)
2.Modelo de capacitação dos SSP ((consultar aqui);
3.Modelo de Implementação dos Estudos de Impacte na Saúde em Portugal (consultar aqui).

No ano de 2020, uma nova Comissão para a Elaboração da Proposta de Reforma da Saúde Pública e sua Implementação foi criada por meio do Despacho nº 2288/2020. Esta comissão, objeto de duas prorrogações, trabalhou incansavelmente em meio à pandemia, sem dispensa de suas atividades profissionais e sem tempo exclusivo para realizar a reforma. Coordenada pelo médico de Saúde Pública Mário Jorge dos Santos Neves, esta comissão priorizou a elaboração de uma proposta para as juntas médicas de incapacidade. Além disso, conduziu um questionário em 2020 para atualizar o diagnóstico da situação dos serviços de saúde pública e produziu uma proposta de decreto de lei para os serviços de saúde pública. O questionário obteve uma elevada participação de 788 profissionais. Entre os principais desafios relatados pelos profissionais na área da saúde pública, destacam-se a falta de recursos humanos, financeiros e informáticos, bem como a carência de incentivos financeiros e outros. Além disso, foram identificadas necessidades formativas e a falta de acesso a equipamentos informáticos e viaturas de serviço.

Considero mais uma vez incompreensível que, após quase três anos de trabalho dedicado, e um relatório final intitulado “​​Uma Saúde Pública para os Cidadãos, para o Estado Social e com o Horizonte de mais anos de vida com saúde​, entregue ao Ministério da Saúde, não tenha recebido a atenção devida. Esta minha nota de pesar é válida tanto para a Direção Executiva do SNS quanto para os vários partidos políticos. A falta de resposta, perante este esforço coletivo, condensado no relatório anterior, dedicado a melhorar os serviços de saúde pública, onde se inclui uma proposta de decreto de lei para os serviços de saúde pública, é algo que intriga. Será que no relatório de cerca de 170 páginas entregue ao Ministério da Saúde, nada houvesse que pudesse ser considerado útil?

No ano de 2023, a esperada Reforma da Saúde Pública parecia finalmente ganhar novo fôlego com o Despacho n.º 4764/2023, criado pelo Gabinete da Secretária de Estado da Promoção da Saúde, que estabeleceu a Comissão para Elaboração da Proposta de Organização e Funcionamento dos Serviços de Saúde Pública. Mais uma vez foram produzidos vários documentos, de onde se destacam “Pilares da Saúde Pública”, uma proposta legislativa para a criação da Autoridade Nacional de Saúde Pública (ANSP), IP, e outra proposta para os Estatutos da ANSP, IP. Todos estes documentos foram entregues a 28 de agosto de 2023 e visavam reorganizar e fortalecer os serviços de saúde pública em Portugal, abordando desafios atuais e necessidades da população. O silêncio e inação que se seguiram após a entrega dos documentos contrastam, porém, com as palavras de apreço da Secretária de Estado da Promoção da Saúde, que destacou a qualidade e o rigor técnico das propostas submetidas pela Comissão.

Recentemente, a transição das Unidades de Saúde Pública para o modelo de Unidades Locais de Saúde ocorreu sem uma definição clara do funcionamento dos Serviços de Saúde Pública. A ausência de uma estrutura sólida e funcional para os serviços de Saúde Pública sob o novo modelo de Unidades Locais de Saúde é preocupante, uma vez que os torna vulneráveis a problemas de organização e gestão, comprometendo sua eficácia e capacidade de resposta às necessidades da população.

Em jeito de conclusão, desde 2016 até 2024, inúmeras comissões dedicaram-se à reforma da saúde pública. Como participante ativo, testemunhei o mesmo desfecho repetido: a ausência de mudança. Será todo este percurso currículo ou um cadastro? Talvez seja a crónica de uma reforma adiada, um legado de promessas não cumpridas. Enquanto os ponteiros do relógio avançavam, a saúde pública permanece inalterada, e o tempo tornava-se o veredito silencioso, impedindo o progresso tão necessário.