1 Vozes amigas dizem-me que continua entre nós, embora talvez em tom menos tribal, um intransigente debate sobre se ainda vivemos ou não em democracia. Uns acusam as chamadas ‘esquerdas’ e o governo de estarem a sufocar a democracia. Outros acusam as chamadas ‘direitas’ de serem intrinsecamente contra a democracia.
Receio ter de dizer que todo esse ‘debate’ exaltado sobre o alegado fim da democracia me parece difícil de entender. Julgava que tivéssemos aprendido que a democracia se distingue precisamente pelo debate tranquilo entre propostas e pontos de vista diferentes. Umas vezes ganham umas as eleições, outras vezes ganham outras. Mas o livre debate entre elas pode continuar. O que distingue as ditaduras é a impossibilidade de debate e de concorrência entre propostas rivais.
2 Depois do 25 de Abril de 1974 e até ao 25 de Novembro de 1975, falava-se entre nós de ‘fascismo ou revolução’. Por outras palavras, a prosaica possibilidade de uma pacífica (e ‘boring’ como dizia elogiosamente Dahrendorf) democracia parlamentar era excluída. Eu julgava que depois do 25 de Novembro — com Mário Soares, Ramalho Eanes, Sá Carneiro, Freitas do Amaral e Cavaco Silva, entre outros — tivéssemos encerrado essas ‘dicotomias infelizes’ (Dahrendorf de novo) próprias do terceiro-mundo.
Vozes amigas dizem-me que afinal não encerrámos. Volta a falar-se abundantemente da ameaça ‘das direitas’ e da ameaça ‘das esquerdas’. A propósito disto e daquilo, é dito que ‘é preciso outro 25 de Abril’. A propósito disto e daquilo é recordado o longo conflito entre comunismo e nacional-socialismo que dominou a Europa continental nos anos 1920-1940: uns para justificar o fascismo por causa da ameaça comunista; outros para justificar o comunismo por causa da ameaça fascista.
3 Esse conflito entre comunismo e nacional-socialismo terá deixado marcas profundas — sobretudo em culturas políticas que não querem, ou simplesmente não sabem como, conhecer outras tradições. Talvez seja oportuno recordar aos nossos exaltados autores que em Inglaterra (como se costumava dizer) e na América, para não falar no Canadá, na Austrália ou na Nova Zelândia, o comunismo e o fascismo nunca tiveram qualquer credibilidade.
Em todos esses países, nenhum partido fascista alguma vez conseguiu eleger um único deputado para um Parlamento nacional. Nos EUA, na Austrália e na Nova Zelândia, os partidos comunistas nunca elegeram um único deputado nacional. No Canadá, terão eleito um (Fred Rose, mais tarde acusado de espiar para a URSS). No Reino Unido, um total de cinco ‘socialistas revolucionários’ foram eleitos para a Câmara dos Comuns: dois em 1922, um em 1935, dois em 1945. Durante todo esse período, o Parlamento britânico teve sempre mais de 600 deputados.
Ainda segundo a mesma fonte (Daniel Hannan, How We Invented Freedom & Why It Matters, 2013), o partido comunista britânico teve no máximo 60 mil inscritos; o francês atingiu 800 mil e o italiano 1,7 milhões.
Por outras palavras, em vez de insistirmos em limitar os nossos horizontes intelectuais à triste dicotomia continental e ibérica entre autoritarismos rivais, talvez fosse intelectualmente mais estimulante investigar por que motivo essa dicotomia esteve ausente entre os povos de língua inglesa.
4 É realmente um mistério e não creio que tenha sido inteiramente decifrado. Winston Churchill, por exemplo, levou 25 anos (durante os quais 5 a liderar o Governo na II Guerra) a escrever um livro em 4 volumes sobre a História dos Povos de Língua Inglesa (finalmente publicados entre 1956 e 1958). Há aí sem dúvida inúmeros contributos. Mas não creio que tenha decifrado o mistério — em boa verdade, também não creio que tenha tentado.
Um livro recente (Political Deference in a Democratic Age, Palgrave, 2021) de uma autora francesa — Catherine Marshall — propõe uma hipótese intrigante, ainda que não totalmente inesperada. Diz ela que a “deferência” dos britânicos para com regras gerais de boa conduta e de cortesia — por contraste com a obediência de outras culturas a ordens particulares de comando — foi um dos factores cruciais da estabilidade da democracia parlamentar britânica desde 1688.
Essa deferência por regras gerais de boa conduta e de cortesia (bem como de pontualidade) teria protegido os povos de língua inglesa das tendências sectárias que levam grupos particulares de todo o tipo — famílias, grupos étnicos ou/e grupos de interesses, partidos políticos, e outros — a acharem normal adoptar entre si condutas que não aceitariam nos outros. (Por exemplo, estacionar em segunda fila).
Por outras palavras, em vez da preferência tribal por interesses ou instintos de grupos particulares, haveria na cultura política de língua inglesa uma deferência tranquila por instituições imparciais e por regras de “fair-play”. Alguns autores — como Adam Smith, Edmund Burke, Alexis de Tocqueville, Karl Popper ou Gertrude Himmelfarb — também chamaram à deferência de Catherine Marshall “gentlemanship”, ou civismo, ou, simplesmente, boa educação.
5 Não sei se a tese de Catherine Marshall e de todos esses autores ainda será válida hoje em dia. Seguramente, a virtude cívica da ‘deferência’ não foi ainda partilhada com as claques inglesas de futebol… E os meninos “woke”, que andam a demolir estátuas e a perseguir quem não subscreve os seus pontos de vista, seguramente também não partilham as virtudes da ‘deferência’.
Mas o que mais me preocupa é que as ancestrais regras do chá das 5 estejam a sofrer drásticas, quase revolucionárias, alterações. A revista “Spectator” de Londres acaba de dedicar uma intensa página ao tema (“Cake expectations: Afternoon tea has gone OTT”, p. 28). E o tema é sem dúvida da maior gravidade. Urge tomar medidas. Antes que seja tarde e a democracia fique em perigo.