De uma certa maneira, ler livros de história e de antropologia é como visitar um jardim zoológico. Temos direito a Sumérios, Hititas, Japoneses samurais, Indianos meditativos, Egípcios, Astecas, Maias, Incas, Ingleses vitorianos, Franceses revolucionários, Papuas, Tupis, Espanhóis conquistadores, Florentinos subtis, Atenienses, Romanos, e por aí adiante. Alguns mais ameaçadores, outros mais amigáveis, mas todos dentro da sua respectiva jaula ou gaiola.
Como se fossem girafas, leões, crocodilos ou hipopótamos, ficamos presos às formas das culturas na sua extraordinária diversidade, procurando a beleza que cada uma delas tem, a par do seu horror específico, e procuramos imaginar o que, no interior da continuidade da experiência humana, significaria pertencer a uma cultura particular, ser um indivíduo formado por essa cultura irredutivelmente singular. Porque as culturas são mesmo formas, como as dos animais, e cada forma representa a expressão de uma vida própria cujo sentido único cada indivíduo encarna. Como com os animais, o exercício do gosto é legítimo. Podemos preferir uma cultura a outra, mas devemos vê-las todas como criações humanas, análogas às criações da natureza que são as espécies animais.
De fora da jaula, a nossa atitude é contemplativa. O nosso olhar detém-se nas formas e sai, por assim dizer, do tempo. Passamos, enquanto dura a contemplação, a ver o mundo, dentro das nossas possibilidades, como os Astecas ou os vitorianos. Observamos os comportamentos, a regularidade das acções e procuramos as razões para esses comportamentos e para essa regularidade, isto é, o sentido das culturas tal como era vivido pelos indivíduos que a elas pertenciam. Às vezes é mais fácil, outras mais difícil, tal como na arte. É mais difícil pormo-nos na pele de um sacrificador asteca, manejando a faca de obsidiana com que extrai o coração da vítima no topo do templo, do que na de um senador romano no fim da República. Esta última tarefa é, de resto, extraordinariamente fácil, pelo menos a um nível superficial. A política romana possui para nós um grau de inteligibilidade excepcional – muito maior, por exemplo, do que a de Atenas, mesmo que esta seja mais fundadora da nossa tradição democrática do que a de Roma. Basta ler a correspondência de Cícero e, é uma maneira de dizer, estamos lá.
Mas a vida não é – se calhar infelizmente – só um passeio num jardim zoológico. A vida vive-se também dentro da nossa própria jaula. Na nossa jaula não temos muito tempo para a descrição e a contemplação. À descrição substitui-se a deliberação e à contemplação a acção. A vida é arriscada, e, se a prudência é obviamente aconselhável, uma precaução excessiva inibe a acção e põe a nossa vida em perigo. Precisamos de deliberar, sem dúvida, mas a deliberação tem uma duração forçosamente limitada, que se conclui com a decisão e a acção. O que faz a racionalidade da acção, tal como a própria natureza do processo deliberativo, depende, desde o princípio, do conjunto de sentidos que são próprios a cada sociedade, aquilo a que um filósofo chamou “significações imaginárias sociais”. Há um enraizamento social da deliberação (privada ou pública) e da acção (pública ou privada). Mas esses sentidos, essas significações, devem-nos permitir agir. De outra forma, a vida dentro da jaula acaba.
Ora, na nossa jaula europeia andamos com vários problemas (a jaula americana também os tem, mas deixemo-los de lado hoje). Um deles – que tem certamente todas as condições para proporcionar, em breve, o mais danoso livro jamais escrito sobre a União Europeia – é toda esta trapalhada com o processo de vacinação, bem analisada aqui ontem por Jorge Fernandes, acentuada pelo último episódio da suspensão das vacinas da AstraZeneca, já não culpa da UE em si, mas de vários Estados-membros individualmente.
Há, obviamente, neste último caso um elemento que é impossível descurar: a velha raivazinha com o Brexit, que tem, também em relação à AstraZeneca, uma já longa história. Como é que a França podia aceitar pacatamente uma vacina de Oxford quando o Instituto Pasteur desistiu da criação da sua vacina a meio da investigação e a farmacêutica francesa Sanofi ainda não deu à luz a sua? O nariz de De Gaulle cresceu infalivelmente, tinha de crescer, na cara de Macron, que, desde o princípio, lançou anátemas sobre a AstraZeneca. E a suspensão fez-se em nome do chamado “princípio da precaução” – ou, numa linguagem mais bárbara, “princípio precaucionário” -, que aconselha a que os decisores políticos ajam imediata e radicalmente contra males potenciais, mesmo que as cadeias causais sejam incertas e não estejamos certos que os males venham de facto a acontecer. Falou-se muito do “princípio da precaução” na discussão sobre o “aquecimento global”, e ei-lo agora de volta. Acontece que tal princípio é fortemente discutível – e muito discutido. A este propósito, aconselho vivamente, de resto, um livro já com uns anos e que me caiu recentemente nas mãos: Laws of Fear. Beyond the Precautionary Principle, de Cass R. Sunstein. Talvez Macron, que foi discípulo do filósofo Paul Ricoeur, o pudesse ler. E, quem sabe?, talvez o nariz de De Gaulle perdesse nele um centímetro ou dois.
Na nossa jaula, para sobrevivermos, temos de lutar contra estas coisas. Contra a inércia burocrática da União Europeia não se vê, é verdade, como lutar. Mandar Ursula von der Leyen de volta para a longínqua galáxia de onde emergiu, sem nunca verdadeiramente ter conseguido disfarçar as suas origens extraterrestres, é praticamente impossível. Mas contra os nossos representantes democraticamente eleitos é possível. O velho truque, como dizia o sábio Maxwell Smart, da deliberação, da decisão e da acção (o voto) funciona sempre. E, por falar disso, e pensando no nosso cantinho da jaula europeia, não seria bom escolher um chefe de Governo que não falasse uma espécie de esperanto burocrático e que acertasse por uma vez ou outra na sintaxe do português? E, sobretudo, que fizesse o necessário para que Portugal fosse uma sociedade mais liberal, onde a independência de quem arrisca criar riqueza fosse fomentada?
Mas, voltando ao princípio, o importante é saber distinguir o que é olhar para as jaulas de fora e viver dentro delas. Confundir as duas situações é um erro lógico de proporções gigantescas. Do ponto de vista de fora da jaula, uma história do fascismo não deve ser nem fascista nem anti-fascista. Do ponto de vista de dentro da jaula, a acção mais nobre contra essa defunta entidade foi a anti-fascista (o mesmo vale, à nossa reduzida escala, para o salazarismo). Do ponto de vista de fora da jaula, o PCP – que suscitou, pelo seu centenário, uma admiração irreprimível em muita gente – deve ser observado com toda a curiosidade de um naturalista diligente. Do ponto de vista de dentro da jaula, o comunismo deve ser combatido como a causa de uma mortandade que ultrapassa todas as medidas. Nos dois casos, não devemos confundir objectos próprios a duas faculdades diferentes, a contemplação e a acção. O erro tem um nome técnico: anfibolia. Quem a pratica tem um pé dentro da jaula e outro fora e vai-os trocando, num equívoco e confuso sapateado. Com certas culturas, como com certos animais, costuma dar maus resultados. Pode sempre haver um literal ou metafórico crocodilo, com seu espontâneo riso franco, pronto a abocanhar o pezinho saltitante. Aliás, qualquer que seja a cultura, dá sempre maus resultados.