O Orçamento do Estado para 2022, que por acaso até era o Orçamento mais à esquerda nos últimos seis anos, foi chumbado pela esquerda, o Presidente vai dissolver o Parlamento e até já há eleições convocadas. E agora? O que resta?

Em 2015, o país, mergulhado numa onda generalizada de descontentamento, assistia a múltiplas greves e manifestações, carreiras congeladas, salários estagnados, subsídios de férias cortados, uma economia desacelerada e os jovens convidados a emigrar. O país, troikizado, estava em frangalhos e imerso num pântano.

A mudança era urgente e António Costa assumiu a construção do que já tinha sido pensado antes. O que nunca a sociedade pensou foi que funcionasse. O que muitos consideravam impossível, imbuídos nas palavras descontextualizadas de Mário Soares, foi concretizado e a ideia de uma coligação à esquerda, foi, pasme-se, aceite pelo próprio Mário Soares. Poder-se-ia afirmar que esta seria uma solução desesperada para formar governo, mas certo é que António Costa já tinha defendido o fim do arco da governação, em pleno debate das primárias, em 2014.

António Costa sentou-se à mesa com Jerónimo de Sousa e Catarina Martins na hora de refazer Portugal. As ideias foram apresentadas e as linhas vermelhas definidas, numa vontade tripartida de mudar o país. A sensação de ardor no estômago à direita levava ao vexame esta solução governativa até no nome dado: geringonça. Porque, no fim do dia, um governo de direita é um governo de salvação, mas um governo de esquerda já é uma geringonça.

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Assumiu-se o desastre e os arautos gritavam que caminhávamos para pior. Contudo, o diabo não chegou, as contas insistiam em bater certo e Maria Luís Albuquerque falhou a aritmética orçamental em horário nobre. A profética narrativa da direita ruiu à medida que o país acolhia este novo modelo de governação, mostrando-se incapaz de contrariar factos. A resiliência comum levou à devolução de direitos e rendimentos, na criação de emprego com contas certas. Apostou-se na modernização, apostou-se no capital do nosso povo, apostou-se em Portugal.

Os partidos parceiros formalizaram acordos, assentes em matérias concretas, nunca colocando em causa a sua raiz programática, nem a promoção de uma relação causa-efeito para a fusão partidária. No entretanto, realizaram-se duas autárquicas, umas europeias e duas eleições regionais e a identidade de cada partido manteve-se bem balizada, sendo que os resultados eleitorais não impediram os entendimentos.

Chegamos agora ao ponto que o PS nunca desejou e de que, honestamente, Portugal não precisava. Nas negociações para este orçamento o Bloco de Esquerda apresentou nove linhas pintadas de vermelho vivo, intransigentemente negociadas com o Primeiro Ministro.

O Orçamento contemplou um aumento extraordinário de pensões, aumento, novamente, do salário mínimo nacional, aumento do vencimento em toda a Função Pública, mantém o descongelamento das carreiras e aumenta em 700 milhões de euros o Serviço Nacional de Saúde.

O Bloco de Esquerda não chumbou estas medidas em específico mas chumbou o caminho para lá chegar, não deixando a discussão chegar à especialidade, nem permitindo a discussão das Leis de Bases onde algumas das suas medidas encontrariam sede de discussão. Não é compreensível, que se chumbe um orçamento que muda a vida das pessoas por matérias que não constam no documento.

Ainda assim, nem só o Bloco de Esquerda protagoniza esta história, uma vez que o PCP também votou contra. Com este orçamento, e com base nas negociações com o partido, antecipou-se o aumento de pensões numa mudança na vida de 2,3 milhões de portugueses. Chegámos ao desdobramento dos escalões de IRS, mudando a vida de 1,5 milhões de famílias. Gratuitidade dos transportes públicos, mostrando abertura para um reforço das verbas do PART e PROTRANSP em especialidade. Foi discutida a gratuitidade progressiva nas creches e a criação de 10 mil vagas.

Enfim, mudanças concretas na vida das pessoas. O que nos resta, então?

O Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, na sua endémica agitação, fruto da sua ressaca de comentador político, avisou que, sem orçamento aprovado, a Assembleia seria dissolvida. E chegados aqui, o Presidente sabia quais os protocolos a cumprir: ouvir os partidos e o Conselho de Estado. Os partidos de esquerda não achavam benéfica a dissolução do governo, os de direita, já com vista nos possíveis resultados positivos nas legislativas, sim. Existindo a dissolução, a maioria dos partidos era favorável à data de 16 de janeiro, excetuando a IL e o PAN que defendiam uma data mais tardia. Já o Conselho de Estado, com a exceção de Francisco Louçã e Domingos Abrantes, deu, na sua maioria, luz verde à dissolução da Assembleia da República.

Mas a todo este circo mediático não faltaram as personagens do costume. Cavaco Silva defendia eleições no final de fevereiro, como se um país em suspenso até lá fosse uma solução tranquilizadora. Rangel, igualmente favorável a datas em fevereiro, passou os dias antecedentes ao Conselho de Estado em plena campanha interna. Os resultados desta incursão só os militantes saberão, mas uma coisa é certa, ao dar abrigo a tantos nomes passistas, deixa Rio cada vez mais isolado.

Francisco Rodrigues dos Santos e Nuno Melo, protagonizam mais uma luta interna ao nível de uma associação de estudantes. “Chicão”, afirma ter legitimidade para levar o mandato até ao fim e, por isso, quer adiar o congresso para o foco ser a entrega das listas, o que no CDS atual me parece um pouco paradoxal. Já Nuno Melo, apoiado pelos dissidentes do “Chiquismo”, defende a antecipação do Congresso já para Novembro, permitindo alcançar a aparente “tranquilidade” e legitimidade pré eleições.

Em suma, o retrato perfeito da direita portuguesa, um desastre.

A resposta final de Marcelo, sem grande choque, veio na noite de 5 de novembro: eleições a 30 de janeiro. Com a desculpa do Natal, Marcelo atirou a bola para o final do primeiro mês de 2022. Até lá, vamos ter um país apreensivo e, quiçá, desacreditado no modelo de governação que trouxe, efetivamente, mudanças muito significativas na vida das pessoas e que, possivelmente, vamos ter de repetir. É que, ao contrário de anteriores dissoluções parlamentares a que fomos assistindo, em que havia uma clara alternativa ao poder, em 2022 este cenário não colhe grande entusiasmo. Aliás, Marcelo Rebelo de Sousa, com esta dissolução, corre o risco de ter provocado eleições para, no limite, tudo se manter igual. Nenhum partido deverá ter medo de ir a eleições e o PS não o tem. Os chumbos parlamentares, moções de censura e todas as dinâmicas da Assembleia da República são o clamor democrático que mantém este sistema dinâmico, vivo e equilibrado. Se este é efectivamente o adeus da Geringonça, depois deste adeus o PS continua, e os portugueses não esquecerão todas as conquistas recentes. O PS está reforçado pela sua defesa intransigente por um país melhor e mais justo e orgulha-se da sua essência fundadora e capacitadora da democracia portuguesa. O PS e os seus parceiros mostraram ser capazes de contrariar todas as expectativas, reforçando a esperança num Portugal melhor. O PS está cá, honrando o seu contrato vitalício com o povo português e deve seguir, orgulhosamente, para a próxima chamada. Faltar a essa chamada, será faltar a Portugal.

Esperemos que ninguém falte, porque o PS, como sempre, não vai faltar.