Esta é uma guerra. Não começa agora, tem meses, talvez anos. Desde Janeiro, quando o Charlie Hebdo foi atacado, houve mais oito ataques terroristas. A França está em guerra; a Europa está em guerra; o Ocidente está em guerra.
De um lado, os Estados europeus. Do outro, o Estado islâmico (ISIS). É uma guerra. Tem um lado forte e outro mais fraco. O mais fraco é o Ocidente com a sua complacência, o seu conformismo, a incapacidade europeia de se unir e funcionar como a força – unida – que devia ser. Os radicais islâmicos, adeptos do verso da violência, não sentem escrúpulos, matam com gosto, por missão, sem receio de morrer, porque morrer a matar não é, dizem-lhes, uma verdadeira morte.
A Europa enfraquecida é uma vítima fácil para os crentes do Califado. Regozijam-se, como nota Rita Katz, do site de inteligência que investiga grupos de terroristas, e que publicou vários tweets ligados ao ISIS a respeito dos ataques: “É apenas o começo… esperem até que os istishhadis (suicidas) cheguem com os seus carros”; “a França manda aviões para a Síria diariamente, bombardeia e mata crianças e velhos, hoje bebe da mesma taça”.
Os tiros em baixo recrudescem, à medida que os terroristas executam metodicamente, um a um, os reféns sobreviventes. No balcão em cima, Benjamin Cazenoves, ferido, escreve a custo um post no facebook. Venham depressa, grita. Salvem-me, implora. A suprema ironia do mundo virtual chega nos comentários de amigos da rede social: coragem; esconde-te; vais-te salvar. Real, mortífera, louca, a kalashnikov dos terroristas não dispara balas virtuais. Oscila na mão do assassino, satisfeito com o trabalho já feito mas insaciável, é preciso matar mais, mais um, outro ainda, aquela mulher, este homem velho, a jovem ferida, a sangrar, ofegante, aponta e dispara, balas reais, das que matam, e o homem no primeiro andar treme, a sala enche-se de gritos, dos feridos, dos assustados, dos moribundos, e a coisa que ele escuta por sobre esses gritos, por sobre os tiros, é o som dos passos dos jihadistas, ouve-os dizer a culpa é do Hollande, vocês atacaram a Síria esta é a retribuição. Medo. Sobreviverá.
Neste ataque, organizado como uma operação militar por um grupo fortemente armado, sincronizado e em vários locais ao mesmo tempo, impressionam alguns simbolismos: dia 13, sexta-feira; a banda de hard-rock chamada Eagles of Death Metal; as explosões, simultâneas com os ataques, nas imediações do estádio onde jogavam as equipas representativas dos países do “velho” eixo franco-alemão, onde estava o Presidente francês. E dele decorrem três consequências quase inevitáveis:
A crise dos refugiados na Europa vai ganhar novos contornos. Muito se ouviu, ao longo da noite, falar dos eventuais e hipotéticos jihadistas chegados nas levas intermináveis de fugitivos da Síria (sobretudo), Iraque, Norte de África. Muitos o afirmaram esta noite, sem provas concretas, é certo, mas confortados pela situação. A verdade é que a tentação de pensar desse modo é grande. Mas não creio que seja bem assim: tratou-se de um ataque pensado, organizado durante meses por gente que conhece o terreno, sabe mover-se no centro de Paris, tem decerto ligações, contactos, conta com cumplicidades. Franceses, porventura (o inquérito o dirá). Mas é impossível evitar que a suspeição alastre e faça de cada refugiado, mais do que nunca, um suspeito. E mais do que nunca a Europa tem de agir em conjunto para evitar a histeria e o drama: em jogo estão valores europeus fundamentais, a liberdade e a segurança. Sempre que cada um deles regride, a Europa regride – e os terroristas ganham.
A segunda consequência é política: este ataque brutal ao coração do velho continente acarretará inevitavelmente o reforço da demagogia anti-Europa, anti-Schengen, anti-imigrantes, anti-tudo. Ao medo instalado no coração dos homens responderão os políticos radicais com o bálsamo da intolerância, do protecionismo, do arame farpado. E os homens, receosos, banhar-se-ão nele – e os terroristas ganham.
Finalmente, entre outras ilações possíveis, terá de haver uma profundíssima e urgente reflexão sobre o estado dos serviços de informação na Europa e na França em particular. Do sistema Sirene. Da vigilância fronteiriça e do registo de suspeitos. Alguma coisa está mal quando, num continente como o Europeu ações (quase anunciadas) como esta passam despercebidas e podem acontecer sem que nada seja possível fazer para as evitar. Conheço uma solução: mais Europa; mais troca de informação; mais coordenação entre polícias e serviços de inteligência; mais solidariedade – assim, terroristas não ganham.
Uma observação final: e nada ficará resolvido; e o Estado islâmico continuará a prosperar; e o medo penetrará fundo no coração do Ocidente se o problema não for atacado na fonte do problema: no médio oriente, na Síria, sobretudo, mas também no Iraque e no Afeganistão; no Norte de África, sobretudo na Líbia; e em qualquer país onde Estados fracos sejam facilmente capturados por grupos radicais entusiasmados e decididos. Só aí a ameaça terrorista islamita se poderá resolver em definitivo, mas para isso é essencial que os europeus se entendam, que os Estados Unidos se entendam (com os europeus) e que ambos convençam a Rússia a entender-se com eles (sim, eu sei que muitos se indignarão, mas o ISIS é um inimigo comum, talvez fosse de pôr por um momento de lado considerações e interesses geo-estratégicos de uns e outros).
Com a hashtag #باريس_تشتعل o ISIS acaba de anunciar que atacará a seguir Roma, Londres e Washington. Estamos em guerra com o Estado islâmico.