Se a primeira década deste século foi marcada pelo terrorismo, as restantes serão definidas pela questão chinesa. Na arena internacional, quando o confronto direto cai, cresce a importância do longo-prazo. Isso vê-se no estabelecimento das prioridades, por exemplo, do Departamento de Estado norte-americano e também no despontar de preocupações geopolíticas no seio da União Europeia. Poderá falar-se, ou pelo menos perguntar-se, se há um regresso da estratégia às relações internacionais.

No fim-de-semana em que Augusto Santos Silva veio, mais uma vez, relativizar a iniciativa Belt and Road, Miguel Monjardino diagnosticou no Expresso uma dialética que auxilia o debate: por um lado, a visão estratégica (“dominante na região euro-atlântica”) e, por outro, a visão geoeconómica (de “ambições industriais, económicas e financeiras”).

Atualmente, de qual destas mais se aproximará o posicionamento português?

O ensaio assinado pelo ministro dos Negócios Estrangeiros no passado domingo oferece uma perspetiva que, consoante a embaixada, poderá ser lida como declaração de intenções ou como nota explicativa. Mas de pouco serve ler Santos Silva, hoje crescentemente pressionado pelos aliados tradicionais de Portugal, sem ouvir o que Santos Silva disse sobre política externa no último seminário diplomático em que participou.

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Em uma hora e dezassete minutos, o ministro, na sua característica elasticidade intelectual, foi da geometria ao divino. Primeiramente, modificou o eixo sob o qual usualmente se debate a política externa portuguesa. De um quadrilátero para um hexágono – assumindo um recente “estreitamento de relações” com a China e com a Rússia – e, depois, para uma série de círculos concêntricos com Portugal ao meio. Uma mente mais humorada suspiraria que, de facto, o MNE tem andado às voltas – mas adiante.

Nos pressupostos mais básicos, não há forma de desgostar do proferido. Sem hesitações, Santos Silva utiliza expressões próprias de um governante do arco democrático. Não renega a importância do nosso património civilizacional (“Somos ocidentais”), chegando mesmo a avisar que “nós estamos do lado da ordem internacional liberal que os revisionistas querem perturbar” e não se colocando à margem do confronto entre “regimes democráticos e regimes autoritários”.

De seguida, o ministro executou uma análise propositadamente realista na sua aparência. A pertença à NATO não é “pertinente” nas nossas relações com os países da América Latina; a força da União Europeia não é ainda “suficiente” para fazer valer os seus interesses nas Nações Unidas. Para Santos Silva, e esta coluna já o havia subscrito, há um “auto-enfraquecimento do Ocidente” e uma ordem internacional que vai sendo “questionada por si própria”.

Terminando, como prometido, no divino, Santos Silva proclamou um novo deus a adorar. Na política externa, segundo o ministro, Portugal não deve simplesmente ser Hermes (“o deus mensageiro”), mas também ser Jano (“o deus das duas faces”). Ora, meu caríssimo leitor, para o nosso MNE, não haveria ato de contrição mais apurado do que este. E não há dossier em que Augusto Santos Silva mais tenha encarnado Jano do que o dossier chinês. Ao associar-se à divindade romana que simboliza a mudança e o “significado da transição”, o MNE está a dizer-nos, de forma mais clássica do que musical, que os tempos estão a mudar. Que, para ele, o interesse nacional estará melhor assegurado se Portugal envergar as tais “duas faces” de Jano.

Desde o seu início de mandato que o ministro dos Negócios Estrangeiros procura, menos literariamente, vender a política externa portuguesa como excecional e específica, com “um papel próprio a desempenhar no multilateralismo” e uma liberdade de atuação na arena internacional correspondente a uma “mais-valia” para os nossos aliados. Apresenta-nos como “ponte” entre uns e outros, eventualmente com uma face de Jano virada para cada margem. Santos Silva insiste recorrentemente no pitch: somos europeístas e atlantistas, mas “autónomos” nas relações com os nossos parceiros (como a China) e isso será uma “mais-valia” para os nossos aliados (como os EUA e a UE). O problema é que os nossos aliados não parecem nada convencidos pelo ponto do sr. ministro. O seu texto publicado esta semana (“Nós, a Europa e a China”) não é mais do que uma assunção desse problema.

Portugal não pode esperar que o aprofundamento das suas relações comerciais e económicas com a China seja indiferente às suas relações políticas e militares com os Estados Unidos da América – especialmente quando o investimento infraestrutural, dos portos ao 5G, tem interferência óbvia na gestão da informação e da segurança. Ao contrário do que escreveu o ministro, a Belt and Road é mais do que uma iniciativa que promove “as ligações entre a Ásia e a Europa através de investimentos em infraestruturas e redes”. É, em síntese, muito mais do que dinheiro: é estratégia. Santos Silva sabe-o ou não seria “segurança” a palavra mais repetida no seu ensaio.

Porquê, então, esta opção? Se a constatação da mudança já é unânime, por que não clarificar o “significado da transição”? O ministro não se coíbe de saudar o consenso, o debate e o “escrutínio público”, mas raramente concretiza esses princípios. Estaremos, certamente, a perguntar à face errada de Jano.