O anúncio da candidatura de André Ventura à presidência da República e os apelos a uma candidatura de Ana Gomes ao cargo anteciparam o ciclo eleitoral. As presidenciais, que a popularidade de Marcelo fazia antever como enfadonhas, serão politicamente marcantes – não pelo seu resultado, mas pelo debate que proporcionarão. Pela primeira vez na história do regime, o principal adversário do incumbente será alguém que coloca em causa a
existência do próprio regime – o que, diga-se, só reforça a pertinência dos que defendem o avanço de Ana Gomes.

Caso contrário, a décima eleição presidencial da III República tornar-se-á um verdadeiro exame à saúde da República. De um lado, Marcelo, o regime personificado, dele fundador e constituinte, descendente da situação, cronista da revolução e omnipresente na transição. Se Ventura é o candidato anti-sistema, poucos simbolizariam tão bem o sistema quanto Marcelo Rebelo de Sousa. Ele é, nas faltas e nas virtudes, a III República: deslumbrante mas instável; bela e desapontante. Cheia de méritos e pecados, amizades e dissimulações. Um homem que foi diretor do Expresso, presidente do PSD, professor da FDL e líder de audiências televisivas durante anos dificilmente representaria melhor o Portugal que saiu de Abril – ou de Novembro, se preferirmos.

André Ventura é o retrato oposto numa moldura idêntica: colunista, mas do Correio da Manhã; comentador, mas de futebol; professor de Direito, mas na Autónoma. O seu discurso, por outro lado, será um borrão no quadro que
Marcelo Rebelo de Sousa pintou enquanto político. Se o atual Presidente foi deputado à Assembleia Constituinte, Ventura está-se “nas tintas para a Constituição”; que saiu dessa Constituinte. Se Marcelo é a figura viva que mais encarna a III República, o deputado do Chega é o homem que aspira “fundar a IV República”; – e, portanto, acabar com esta.

Um representa as conquistas (um Estado Social quase unânime, um europeísmo sólido, uma liberdade religiosa invejável, uma consciência ecológica generalizada,) e as falhas (a corrupção endémica, a propaganda como norma, a estagnação económica) do regime; o outro baseia-se numa ruptura programática com essas conquistas e num aproveitamento populista (mas inevitável) dessas falhas do regime.

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Como conservador, sei qual é o único voto possível perante este cenário. Mas para a III República vencer – e sobreviver – nas presidenciais, Marcelo não precisa apenas de ganhar as eleições; precisa de derrotar, ponto por ponto, André Ventura e o seu projeto de contestação do regime. Para o conseguir, o inquilino de Belém terá de fazer algo inédito em quase cinquenta anos de democracia: um ato de contrição, uma assumpção dos problemas e dos erros estruturais que prejudicaram – e muito – o futuro do país que preside. Terá de dizer: “Eu sei, eu vi e é hora de assumir que nunca mais poderá voltar a acontecer”. Se o fizer, a História lembrá-lo-á com reconhecimento e a
República dever-lhe-á muito. Se não o fizer, perderemos todos – menos André Ventura.

P.S. – Devo um agradecimento a Pedro Filipe Soares, do Bloco de Esquerda, que não será certamente um leitor desta coluna mas que lhe deu razão há uns dias. Segundo o líder parlamentar do BE, o Partido Socialista “rompeu” com a “geringonça”. Concordamos. Só não usámos o mesmo verbo.

P.S. 2 – Muito se tem escrito sobre “o regresso” de Pedro Passos Coelho à praça pública, tendo o ex-primeiro-ministro falado três vezes num escasso período de tempo. Creio, e é um palpite, que a explicação é mais simples do que aparenta. Com a “geringonça” já desfeita e as diretas no PSD já resolvidas, o surgimento de Passos não pode ser acusado de vir unir a esquerda ou de interferir na vida interna do seu partido. Está, agora, livre para dizer o que lhe apeteça. E o país bem precisa de ouvi-lo – sobre o que se passou e sobre o que se vai passar.