1. O PS tem um sonho no que ao Ministério Público (MP) diz respeito. Desde os trabalhos da Assembleia Constituinte em 1975/76 que os socialistas sonham em importar o chamado modelo francês que consiste em criar uma magistratura na dependência do ministro da Justiça e dele recebendo ordens específicas. É a chamada governamentalização da investigação criminal (com tudo o que isso tem de mau e péssimo) que hoje é apelidada eufemisticamente por alguns socialistas (e por Rui Rio) como uma subordinação ao poder democrático.

E por que o fazem? Porque receiam que a Justiça lhes corte outro sonho: o de transformarem o PS numa espécie de PRI — o partido que elegeu todos os chefes de estado entre 1929 e 1994 e dominou o México. A mexicanização da democracia portuguesa é o sonho desta gente.

Mas vamos por partes.

2. António Costa anunciou a 30 de maio que uma das prioridades do PS para a próxima legislatura será reforçar os “mecanismos” de “combate à corrupção.” Primeiro o óbvio: se o combate à corrupção só será uma prioridade entre 2019 e 2023, parece claro que não o foi — como demonstra a realidade dos factos — durante os últimos quatro anos. Depois uma convicção: é igualmente óbvio que o PS não quis, não quer e não vai querer lutar contra a corrupção. Costa, que é um dos políticos mais maquiavélicos da democracia portuguesa, fará sempre o contrário do que diz.

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A primeira prova disso mesmo é o facto de PS ter apresentado no Parlamento uma proposta de lei para um novo Estatuto do MP em que quer acabar com a equiparação histórica entre a magistratura judicial e a magistratura do MP. Desde o 25 de Abril, que essa equiparação tem sido fundamental para construir um Poder Judicial composto pelos Tribunais (órgão de soberania e independente) e pelo Ministério Público (magistratura autónoma) e que serve, entre outros propósitos, para executar o elementar serviço de escrutinar o Poder Político.

Basta ler o pensamento de uma socialista como Isabel Moreira para percebermos rapidamente qual é o objetivo a longo prazo do PS. Diz a deputada Moreira, a propósito da proposta de lei para o novo Estatuto do MP — e, enfatize-se, recorrendo a citações do jurista Marcelo Rebelo de Sousa — que a Constituição determina que:

  • o MP não “goza de um estatuto de independência” mas sim “apenas de autonomia administrativa”;
  • o MP participa na “execução” da política criminal (e participa em conjunto com outras entidades e órgãos) mas “em caso algum na definição dessa política”;
  • logo — e este é o ponto essencial do pensamento da deputada Moreira o MP “é Administração Pública, sujeita aos poderes de controlo governamentais.”

Parece que a deputada Isabel Moreira é licenciada pela Faculdade de Direito de Lisboa e alegadamente é constitucionalista. Daí a minha total surpresa pela sua afirmação peremptória de que um procurador adjunto, procurador da República ou um procurador-geral adjunto equivale a um funcionário público. Por outras palavras: que um magistrado do MP não passa de um manga-de-alpaca (como todo o respeito pelos mangas-de-alpaca) que piam fininho e obedecem às ordens do Governo. Pior: a deputada Moreira entende que o MP goza “apenas de autonomia administrativa”, como se a lei permitisse que o titular da ação penal pudesse receber ordens do Poder Executivo para levar o inquérito criminal neste ou naquele sentido…

Acreditando nas palavras da deputada Moreira, fica claro que o objetivo do PS, com o fim da equiparação entre as duas magistraturas, é verdadeiramente o de transformar o MP numa repartição da administração pública sob total controlo do Governo. Devemos, por isso, agradecer a sinceridade da deputada Moreira.

3. Ora, a evolução do enquadramento constitucional e legal do MP prova claramente que a visão da deputada Moreira (e aparentemente a do PS) constitui um regresso ao 24 de abril de 1974. Eu, que não sou de esquerda, não lhe chamaria um regresso ao fascismo. Mas é claramente um regresso à lei que vigorava durante a Ditadura.

Se não vejamos. A Constituição de 1976 deu dignidade constitucional ao MP, deixando claro que os seus magistrados estavam única e exclusivamente sob a alçada da Procuradoria-Geral da República (PGR). Por seu lado, a lei orgânica da PGR estipulou, a 25 de abril de 1976, que o órgão de gestão da magistratura seria o Conselho Superior do MP, composto por uma maioria de magistrados. E em junho de 1978 foi aprovada a lei orgânica do MP que consagra que a magistratura tem carreira própria e que goza de “autonomia em relação aos demais órgãos de poder central, regional e local.”

Já depois da revisão de constitucional de 1989 a autonomia da magistratura do MP foi definitivamente consagrada. Consequentemente, e este é o busílis da questão, foi alterada a lei orgânica do MP através da lei n.º 23/92 de 20 de agosto para que fosse retirado ao ministro da Justiça o poder de dar instruções de qualquer ordem ao MP, salvo aquelas que tinham a ver com as ações cíveis em que o MP representa o Estado como parte. As alterações posteriores só vieram a reforçar a autonomia do MP e a acentuar a ausência de qualquer controlo do Governo sobre a ação da magistratura no plano criminal. Precisamente o contrário do que defende a deputada Moreira.

A tal ideia da deputada Moreira de que o MP “é Administração Pública, sujeita aos poderes da controlo governamentais” já existiu na lei. Mais precisamente até ao dia 25 de abril de 1974. Por exemplo, o Estatuto Judiciário de 1962 estipulava que o MP “constitui uma magistratura amovível, responsável e hierarquicamente organizada na dependência do ministro da Justiça.” Ou seja, o Governo podia ditar “normas de procedimento do MP” enquanto titular da ação penal. Tudo porque o MP era uma magistratura menor, vestibular, que servia apenas para ter acesso à magistratura judicial.

Este é o ‘sonho’ do PS em relação ao MP que foi devidamente explicitado pela deputada Moreira.

4. Por tudo isto, compreende-se que o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público faça uma ameaça de greve perante o ataque em curso do PS à autonomia do MP. É que as vozes no PS recuaram em 75/76 estão de regresso, e em força, na ressaca da Operação Marquês e do primeiro chefe do Governo (do PS) acusado de corrupção, da prisão do ex-ministro Armando Vara, das consequências do caso BES/GES que comprovaram que um ministro do PS (Manuel Pinho) recebia uma avença mensal de Ricardo Salgado e dos inúmeros casos, como a Operação Teia, de autarcas socialistas suspeitos de crimes económico-financeiros no exercício das suas funções.

Porque se o PS quisesse, de facto, combater a corrupção não permitira que a Polícia Judiciária (que depende do Ministério da Justiça) fosse obrigada a escrever estes textos nos autos de uma investigação económico-financeira: “(…) inexistem, por ora, quaisquer condições para dar início à presente investigação, em face das graves carências de recursos humanos nesta Secção Central e das elevadas pendências de inquéritos registadas” — como já pude constatar em diversos inquéritos criminais que consultei. A Judiciária, a polícia portuguesa mais prestigiada e competente, não tem recursos humanos nem orçamentais para acudir às investigações abertas pelo MP por culpa deste Governo do PS. Essa é uma das razões para que as investigações em curso no Departamento Central de Investigação e Ação Penal andarem a passo de caracol.

Se o PS quisesse, de facto, combater a corrupção não deixaria que um funcionário do partido a trabalhar na Delegação do PS no Parlamento Europeu (PE) escapasse incólume às suspeitas reveladas pelo Observador de que estará envolvido no desvio de cerca de 369 mil euros de fundos públicos europeus. Tal como não permitiria que o chefe da Delegação do PS no PE (Carlos Zorrinho) fosse reeleito para um novo mandato depois de se descobrir que a delegação esteve alegadamente envolvida num esquema de fraude fiscal de cerca de 914 mil euros. Sendo igualmente certo que, durante o período em que estas alegadas irregularidades se verificaram, a direção nacional do PS andava a pedir ajuda financeira de emergência aos eurodeputados.

Há muitos outros casos, mas se o PS quisesse mesmo combater a corrupção, em suma, já tinha feito um exercício de auto-crítica pública pelos seis anos do Governo Sócrates e apresentado desculpas aos portugueses por tudo o que Sócrates fez de errado. Como se tem visto no caso CGD/Berardo.

E, já agora, se a deputada Isabel Moreira quisesse colaborar com a Justiça, também já teria pedido para ser ouvida no inquérito das Parcerias Público-Privadas, enquanto ex-assessora do secretário de Estado Paulo Campos. Talvez a procuradora Ligia Salbany, a titular dos autos que investiga suspeitas de corrupção do Governo Sócrates, esteja interessada em saber a verdadeira razão pela qual a deputada Moreira abandonou o cargo e foi eleita deputada pela mão de José Sócrates.

Nada disto aconteceu — nem acontecerá. E, por isso mesmo, é fundamental que o PS não consiga domesticar nem a Justiça, nem outros contra-freios como a comunicação social, sob pena de um dia acordarmos e percebermos que a nossa democracia é semelhante ao regime que o PRI instituiu no México entre 1929 e 1994 ou como são atualmente os regimes da Polónia e da Hungria de Viktor Orban.