Pergunto-me: já se pode reconhecer que a vacinação de professores em prioridade foi uma cedência política a interesses corporativos, sem qualquer sustentabilidade em critérios de saúde pública? Talvez não seja aconselhável dizê-lo, para não agitar um debate público que se tornou irracional e crispado. Mas é a verdade. E a testagem massiva nas escolas, nas últimas semanas, traçou o retrato que faltava: as escolas são espaços onde há pouco contágio de Covid-19. Nos dados mais recentes, divulgados esta semana, os testes detectaram 340 casos em 225 mil testes — ou seja, uma percentagem de positivos de 0,15% (um valor irrisório). Há 15 dias, a percentagem de positivos foi de 0,1% (125 casos em 110 mil testes). Era este o risco que justificava a vacinação de quase 200 mil professores, à frente de indivíduos de 70 anos ou, por exemplo, de quem trabalha nas caixas de supermercado?

Não vale a pena alegar que os resultados destes testes rápidos nas escolas constituem uma surpresa. Não constituem. Há meses que as evidências falavam por si: as escolas são espaços relativamente seguros onde, se cumpridas as regras sanitárias, o contágio era improvável, sobretudo nos primeiros anos de escolaridade. Repare-se que isto havia sido reconhecido, incluindo em reuniões do Infarmed. Tal como durante semanas havia sido sublinhado que o risco de manter escolas abertas (nos períodos mais críticos da pandemia) tinha mais a ver com o que se passava fora das escolas (maior circulação de pessoas) do que dentro das escolas (salas-de-aula). Mas tudo isso foi esquecido, convenientemente, na 25ª hora da definição dos grupos prioritários para a vacinação — para incluir os professores nos grupos de risco.

Um país que se queira levar a sério tem de se interrogar sobre esta opção política — repito: política, porque não foi um critério de saúde pública. A mortalidade por Covid-19, em Portugal, está concentrada em 96% nas faixas etárias a partir de 60 anos, pelo que o razoável seria a vacinação seguir o critério de idade (aquele que, aliás, vigora nesta fase). Então, como explicar que professores saudáveis de 30, 40 ou 50 anos fossem vacinados em prioridade, à frente de cidadãos com 70 anos? E como explicar que os grupos de risco incluíssem os professores, mas não quem lida diariamente com milhares de desconhecidos (nos supermercados, no entendimento ao público, nos transportes)?

A resposta que me ocorre é tragicamente simples: em Portugal, a força das corporações determina opções de políticas públicas, justifica privilégios e impõe excepções às regras. Com ou sem pandemia. E os professores, pela quantidade e pelo vigor reivindicativo dos seus representantes sindicais, são uma das corporações que o poder político mais escuta e mais receia atiçar, com medo de gerar insatisfação numa clientela eleitoral. Não são caso único. O mesmo acontece com outras corporações, a começar pelos funcionários públicos, que agora o governo prendou com uma residência de estudantes exclusiva para os seus filhos — uma discriminação tão inaceitável que até custa a acreditar.

Ora, nada contra os professores, os funcionários públicos ou os seus representantes — fazem o seu trabalho e organizam-se na defesa dos seus interesses. Nada contra, também, os professores do ensino superior, que anseiam agora pelo mesmo privilégio ilegítimo dos professores do básico e secundário — discordo da sua reivindicação, embora compreenda que peçam para si aquilo que vêem ser dado aos outros. Dito isto, tenho tudo contra um Governo que orienta as políticas públicas para a satisfação das corporações e das clientelas eleitorais, em vez de para o bem comum, deixando para trás os direitos daqueles que não têm representação musculada para meter o poder político em sentido.

Seja quando dá prioridade à vacinação de professores, seja quando cria residências para estudantes filhos de funcionários públicos, o Governo manda uma mensagem ao país: igualdade de direitos, sim, mas há uns mais iguais do que outros. Deve ser isto que significa a “democracia imperfeita” que se festejou há dias: o regime democrático pode estar em vias de celebrar 50 anos, mas o espírito da Câmara Corporativa continua bem vivo.

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