Atrevo-me a contradizer as palavras de Alberto Caeiro, porque eu não “(…) sou do tamanho do que vejo”, sou do tamanho da minha idade, da minha experiência e, como professora, do que trouxe de cada aluno com quem trabalhei.

Nasci em tempos de Estado Novo e esse Portugal triste, com pessoas vestidas de escuro, marcou indelevelmente a minha infância e deu-me uma visão crítica sobre os regimes opressores. A frase “Não se pode falar contra o governo porque vem a PIDE e leva tudo” era uma expressão corrente, quase proverbial, que assustava as crianças e que alertava, simbolicamente, naquele “tudo”, para a ação avassaladora e indiscriminada da polícia política. Os relatos da vida dos sanjoanenses que se opuseram ao regime rematavam a minha vivência num país de política fascista.

Contornando e superando vários obstáculos económicos e sociais, licenciei-me em Línguas e Literaturas Modernas, na Universidade do Porto, e, por motivação e desejo, vi-me a construir uma carreira docente que me colocou em contacto diário com a palavra literária. O Mestrado em Literatura Portuguesa Moderna e Contemporânea viria a apurar a ligação aos livros e ao desejo de valorizar as Humanidades.

No meu exercício profissional, rapidamente concluí que, quando o teatro encontra a sala de aula, se aprende mais e melhor, e por isso comecei a desempenhar várias personagens que aparecem inopinadamente. São vários os momentos em que o Camões, o Álvaro de Campos ou outros irrompem pela sala dentro e, num discurso de 1.ª pessoa, provocam a reação dos alunos, levando-os a interagir no mesmo registo.

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As paredes da sala de aula são sempre limitadoras e, por isso, procuro vários palcos fora da comunidade escolar ou transformo locais inesperados em espaço de aprendizagem. No parque do Rio Ul, aprende-se o tema basilar da lírica de Ricardo Reis porque, em frente ao rio, vemos um barquinho de papel ou de casca de pinheiro que desliza, concretizando-se visualmente a metáfora de que a vida (o tempo) é um rio que corre e não volta atrás. O quarto da Toca, que acolhe os amores de Carlos e Maria Eduarda d’Os Maias, ganha toda a simbologia dos indícios trágicos quando os alunos seguem, pela cascata situada no mesmo parque, a vida de S. João Batista.

Não invisto na formatação e massificação do ensino. Cada turma é uma pluralidade de personalidades, de formas de estar e de aprender, portanto, cada aluno é uma individualidade que respeito e procuro descobrir, para com ela melhor interagir e levar a aprender. Começo o ano letivo escrevendo uma carta a cada aluno, com destinatário no subscrito e que coloco na carteira antes de entrarem. Esta carta, julgo, tem poderes: o de criar motivação para a mensagem poética (porque há sempre um poema), empatia na relação que se inicia a cada ano e compromisso porque, em princípio, uma carta gera uma resposta, escrita ou atitudinal.

O conceito de “escola inclusiva e integradora” perde, para mim, o impacto porque a minha ação sempre o foi, seja nas aulas, seja nas atividades que dinamizo. Este é o objetivo da escola pública: promover a igualdade de oportunidades e de sucesso, respeitar a diferença e ser espaço de conhecimento, humanismo e formação cívica em valores como democracia, liberdade e igualdade.

A perceção de que a arte dramática, o teatro, é uma força pedagógica e uma competência minha, levou-me à formação de dois grupos de teatro: um de alunos e outro de docentes. O envolvimento e a motivação dos jovens é tal que não posso deixar de partilhar um pequeno episódio. Em pleno decurso de uma peça, na sala de espetáculo, chegava a vez de um menino entrar em cena. Uns segundos antes, eu tinha-o procurado com o olhar e não o tinha encontrado. Preocupada, “acionei o alerta”, ninguém o via nos bastidores, mas um “Ele está no palco!” sossegou-me. No tempo correto, o pequeno ator, falou e voltou a sentar-se à boca de cena. No final perguntei o que se tinha passado. “Depois da minha 1.ª fala, decidi ficar no palco porque via melhor tudo e não me atrasava na entrada!”. Só um abraço podia ser a minha resposta. A formação destes grupos deu-me a oportunidade de criação dramatúrgica o que permite que todos tenham voz em palco (não há figuração nas minhas peças). A ação dos grupos é vasta por isso “saltamos os muros” da escola e conquistamos a cidade.

Lecionando a disciplina de Português, acolher escritores é uma atividade profícua e regular. Realiza-se através de intervenções de leitura expressiva, coral e performativa, diálogo aberto e termina com a ida ao Jardim dos Poetas. Ainda com o objetivo de promover a educação literária, pela leitura e pela escrita, dinamizo um projeto de continuidade – a revista literária D’Outrum Lamment – com edição, ininterrupta e anual, que publica trabalhos originais de alunos, docentes e não docentes.

Na linha do que defendo na educação, creio que o meu desempenho docente está ao serviço da escola pública. Desenvolvendo estratégias de captação de atenção e de ensino que respeitam e potenciam as competências pessoais e desenvolvem aquelas que preparam a autonomia e a vida em sociedade, penso estar a contribuir para a construção de uma escola pública digna e de qualidade. Por isto e para isto, sou professora e cidadã.

Professora na Escola Básica e Secundária Oliveira Júnior, S. João da Madeira. Finalista do Global Teacher Prize Portugal 2023

‘Caderno de Apontamentos’ é uma coluna que discute temas relacionados com a Educação, através de um autor convidado.