Domingo à noite, quando começarem a ser conhecidos os resultados das eleições europeias, estou em crer que não faltarão os que, pelas televisões do Velho Continente, com ar pesado e voz grave, nos falarão do perigo da extrema-direita ou da grave crise por que está a passar a democracia. O previsível avanço eleitoral de alguns partidos xenófobos e uma abstenção elevadíssima na generalidade dos países justificarão o seu tom ora alarmista, ora pesaroso.
Tenhamos calma. A democracia é uma flor frágil, mas não tão frágil assim.
Comecemos pela abstenção, que deverá ser muito elevada. Não sinto, sinceramente, que nos devamos preocupar demasiado com isso. Muitos europeus não irão votar porque não atribuem muita importância às eleições europeias, o que é absolutamente compreensível. A União Europeia não é uma verdadeira democracia e o Parlamento Europeu também não é um verdadeiro parlamento. Apesar de as elites europeias andarem por aí a dizer o contrário, o povo não se deixa enganar. Ele sabe, por exemplo, que pouco pode mudar, a nível europeu, com o seu voto. Mais depressa tem esperança que alguma coisa mude a nível nacional. É por isso que ou não se incomoda demasiado a ir votar, ou vai votar em partidos inapresentáveis nos quais nunca votaria, naquelas proporções, se as eleições fossem mesmo a valer.
É habitual ouvirmos as carpideiras do costume chorarem grossas lágrimas pela democracia sempre que a abstenção é muito elevada. Deixemo-las chorar e não lhes demos demasiada atenção. A democracia estaria realmente em perigo se o povo quisesse votar livremente e fosse impedido de o fazer, mas não está em risco quando o povo livremente opta por não votar. É, afinal, um seu direito.
Por outro lado, ligar muito à abstenção é, no limite, dar razão a mentes retorcidas e quase cómicas, como a do deputado comunista Miguel Tiago, que escreveu sexta-feita esta pérola no seu Facebook: “A abstenção, o branco e o nulo são a maior das invenções do capitalismo. Se os que não estão satisfeitos com o capitalismo não votam, deixam a decisão nas mãos dos que estão. É a ditadura perfeita.”
Também devemos reagir com alguma moderação à esperada subida do voto em partidos “agitadores”, como ontem aqui lhes chamávamos no Observador. Primeiro, porque é muito duvidoso que algumas das forças políticas que se arriscam a chegar em primeiro lugar nos respectivos nestas eleições europeias fossem capazes de repetir a proeza se as eleições fossem realmente a sério, decidissem de facto quem formaria o próximo governo dos seus países. Há no voto europeu uma componente de “voto gratuito”, sem custos políticos, que favorece o voto de protesto, e deverá haver muito voto de protesto depositado nas urnas por esse continente fora.
Apesar de erupção de muitos e diversos populismos, não há no avanço dos partidos “agitadores” um padrão comum a não ser a componente de protesto. Não há um programa único que tenho mobilizado os eleitores numa base transfronteiriça, não há sequer programas coerentes a nível nacional, onde muitas destas forças políticas estão apenas obcecadas com um ou dois pontos da agenda política e não constituem alternativas credíveis de governo. Mesmo se a generalidade destes partidos advogam posições defensivas, de encerramento nas conchas das respectivas nações, de recusa do mundo globalizado, mesmo se podemos encontrar surpreendentes coincidências entre os programas económicos de um partido de extrema-direita, como a Frente Nacional francesa, e um partido de extrema-esquerda, como o grego Syriza, isso não faz do conjunto destes “agitadores” uma força coerente capaz de se afirmar como alternativa aos grandes partidos europeus.
Não estamos em véspera de uma ascensão de Hitler ao poder – ou mesmo de um surpreendente, e alternativo, regresso dos comunistas. Mas é bom que tenhamos consciência que não o devemos ao comportamento mais responsável de muitos dos nossos líderes políticos, devemo-lo tão somente à circunstância de a Europa de 2014 não ter nada a ver com a Europa de 1914 ou de 1933.
Há muitas razões para os eleitorados protestarem, como farão nestas eleições. Mas há ainda mais boas razões para não quererem perder o imenso que as nossas sociedades adquiriram arriscando dar o poder a aventureiros e demagogos, de esquerda, de direita ou do centro. Há cem anos, em sociedades imensamente menos prósperas e mais duras do que as actuais, faziam-se revoluções. Hoje o mais que se arrisca é ficar em casa (enviando o sinal da abstenção) ou votar num partido marginal numa eleições com poucas consequências práticas.
Não estejamos pois demasiado preocupados com a saúde da democracia europeia e centremo-nos no essencial: em ler com atenção os resultados eleitorais para introduzir nas políticas públicas as afinações que os povos reivindicam. Com humildade. Humildade democrática. Este sim deve o foco das discussões de domingo à noite.
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