António Costa não planeou com certeza o que se está a passar. No projecto ideal, nesta altura já teria tido eleições e a maioria absoluta, que lhe permitiria governar com as políticas que melhor servem os interesses do país e do Estado social. Mas, infelizmente para todos nós, começamos neste momento a receber os presentes envenenados de uma política de distribuição de dinheiro à custa dos serviços públicos, num Estado já de si muito frágil.

Quem não acreditou nos alertas que temos vindo aqui a fazer começa agora a ver, na prática, o preço da aceleração na reposição dos rendimentos, sem qualquer reforma do Estado, num país que não ficou rico de repente. Era óbvio que para dar por um lado, à velocidade a que se deu, tinha de faltar do outro, ou a outros. Na frieza do cálculo político, os outros são sempre aqueles que não têm voz, que não se conseguem ver.

Os casos multiplicam-se.

O ano de 2017 ficará durante muito tempo na memória como o mais mortífero por causa dos incêndios. Mais de cem pessoas morreram entre a tragédia de Pedrogão e a de 15 de Outubro. Há quem diga que aconteceu com este Governo mas poderia ter acontecido com outro qualquer. A desorganização da floresta tinha traçado este destino, argumenta-se. A probabilidade é elevada. Mas se a tragédia de Pedrogão pode acolher esse argumento – embora os relatórios revelem que se podia ter feito mais –, já é muito difícil justificar o que aconteceu a 15 de Outubro sem referir a falta de meios, seja ela ditada por incompetência na antecipação das necessidades face às previsões meteorológicas, seja por razões de poupança financeira.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

O surto de legionela no Hospital S. Francisco Xavier com duas mortes e com a polícia a interromper os velórios para proceder a autópsias que o hospital não fez, aparentemente por falta de comunicação com o Ministério Público, é o mais recente exemplo do défice de investimento em segurança e manutenção assim como do grau de desorganização a que chegámos. Quem é responsável por isto tudo ter acontecido? Ninguém.

Como ninguém é responsabilizado pelo caso de Tancos. Como se não bastasse o que aconteceu – instalações militares deixarem-se roubar – assistimos incrédulos a uma conferência de imprensa do chefe de Estado-Maior General do Exército, o general Rovisco Duarte, a revelar que veio uma caixa a mais, de petardos, no material encontrado – e ri-se a exemplificar o tamanho da caixa, considerando natural que tal aconteça. Porque chegamos a este ponto também nas Forças Armadas? Mais do que falta de recursos, o caso de Tancos é especialmente revelador da desresponsabilização geral, assumida com a maior das naturalidades quer do ministro como das chefias militares.

São três casos terríveis, imagem aterradora do estado em que estamos à qual se juntam outros pequenos sintomas. Na saúde acumulam-se dívidas e suspeitas de limpeza de ficheiros para que não se saiba exactamente a dimensão das listas de espera, como denunciou o Tribunal de Contas. Nos transportes públicos, vamos conhecendo problemas vários. Nas escolas vai havendo denuncias de falta de pessoas ou de alimentação nas cantinas com falta de qualidade. O Estado parece estar a desfazer-se.

Pior ainda é o que pode estar para chegar. Há dias num debate no Expresso da Meia Noite, David Justino, coordenador da moção de Rui Rio à liderança do PSD, dizia que neste momento ninguém quer falar do problema da Segurança Social, finge-se que não existe. Foi isso mesmo que se fez no debate na generalidade do Orçamento do Estado. O ministro do Trabalho e da Solidariedade Vieira da Silva tem a obrigação de saber que temos um problema de sustentabilidade nas pensões de reforma mas, apesar disso, achou por bem alinhar no populismo das acusações ao Governo de Pedro Passos Coelho de querer “cortar” 600 milhões nas pensões, quando sabe que não é disso que se trata.

Se nada se fizer, caminhamos a passos largos para uma sociedade ainda mais desigual. Terão acesso à saúde, a dinheiro na velhice e à educação os que tiverem muito dinheiro.

Estamos a perder tempo, a desperdiçar a oportunidade do crescimento da economia, da descida do desemprego e dos juros historicamente baixos para salvarmos o Estado que nos garante apoio na doença, no desemprego e na velhice e que dá a todos iguais oportunidades de educação. Pior que a troika é possível.