Ainda se lembra dos eventos-piloto no sector cultural? Aqueles que foram organizados em Abril e Maio para ajudar a definir as regras sanitárias para os eventos culturais durante o Verão, mas cujos resultados nunca foram publicados? Muitos já se terão esquecido, entretidos com autárquicas e negociações do Orçamento de Estado. E muitos outros dirão que agora já não importa: o tempo passou, o “dia da libertação” chegou e as regras para os eventos culturais foram revistas para diminuir os constrangimentos e autorizar lotações máximas. Ora, permitam-me discordar: acho que importa muito escrutinar a governação e, sobretudo, não entregar ao esquecimento os erros graves, as mentiras coxas e a incompetência — nomeadamente quando arrastam consequências severas para as vidas de milhares de profissionais e cidadãos. Recapitulemos.

  1. No dia 1 de Abril, o Conselho de Ministros anunciou um diploma para a realização de eventos-piloto, que testariam os riscos de contágio da Covid-19 em espectáculos. O diploma tinha uma ambição clara: “a definição das orientações técnicas relativas à ocupação de lugares, à lotação e ao distanciamento físico” em espectáculos e festivais nos próximos meses. Por outras palavras: os resultados dos eventos-piloto seriam o guia científico para definir as lotações e a viabilidade de organização de eventos de maior escala, como festivais de Verão.
  2. Realizaram-se quatro eventos-piloto. O primeiro e o segundo na cidade de Braga (29 e 30 de Abril), ao ar livre e para 400 pessoas cada — sentadas no primeiro, de pé no segundo. O terceiro evento-piloto foi a 8 de Maio, em Coimbra, para 1000 pessoas em pé, divididas em grupos de 250. O quarto evento-piloto realizou-se no dia seguinte, em Lisboa, também para 1000 pessoas, mas sentadas na sala do Campo Pequeno.
  3. A expectativa era que os resultados fossem divulgados muito rapidamente. De acordo com a ministra da Cultura, Graça Fonseca, demoraria até 2 semanas para se conhecer os resultados, que seriam analisados pela DGS. A rapidez era uma necessidade: muitos promotores de espectáculos aguardavam pelas decisões do governo e novas orientações da DGS para decidir sobre a realização ou não dos eventos que tinham na sua programação. Ora, o tempo foi passando e os resultados continuavam sem aparecer. Em Junho, já sem margem para prolongar a espera, os promotores começaram a cancelar os espectáculos.
  4. Após muitas perguntas sobre essa inexistência de resultados, apareceram algumas respostas. A 14 de Junho, as associações representativas do sector cultural dão nota da informação que lhes havia chegado: tinha existido um “problema informático” na recolha e tratamento dos dados, que inviabilizara a produção de resultados. Estaria em causa, alegadamente, uma incompatibilidade entre os dados recolhidos pela Cruz Vermelha e as bases de dados da DGS. Contudo, no dia seguinte, a 15 de Junho, a DGS desmente esta informação: não havia “erro técnico”, mas sim um trabalho de correspondência de dados dos espectadores entre bases de dados, pelo que o processo ainda estava em curso e seria mais demorado do que inicialmente previsto.
  5. No dia 15 de Junho, sem resultados dos eventos-piloto, a DGS actualizou a norma sanitária referente aos eventos culturais, obrigando à apresentação de teste negativo à Covid-19 para os eventos com lotações superiores a 500 pessoas em sala fechada ou 1000 pessoas ao ar livre. Sem suporte de evidências dos eventos-piloto e com uma parte substantiva da população já vacinada, a DGS definiu regras apertadas, sem explicar os seus critérios, e, aos olhos do sector, inviabilizou a realização de actividades culturais nos meses de Verão.
  6. Ao longo de semanas, a ministra da Cultura foi sendo questionada sobre os eventos-piloto e, sucessivamente, demarcando-se dos atrasos. Entretanto, os agentes culturais organizaram protestos. Mas, perante o silêncio, o tema foi caindo no esquecimento. Até que Álvaro Covões, representante dos promotores, partilha que, tanto quanto ele havia sido informado, os resultados estariam preparados e a sua apresentação prevista para o início de Agosto. Mas tal apresentação não aconteceu — nem nessa altura, nem desde então.
  7. Chega Setembro. E numa entrevista publicada no dia 24 pelo semanário Expresso, questionada acerca do tema, a ministra da Cultura responde que “julga que os dados já estarão analisados”. Julga — porque não teria a certeza. A resposta traduz-se assim: a ministra queria afastar-se desta trapalhada o mais longe possível, salientando que o dossier é da responsabilidade de outrem. Só que essa é uma missão impossível: não só a ministra é a responsável política que presta contas aos agentes culturais, como foi a ministra quem deu voz à importância dos eventos-piloto, em Abril e Maio, que os apresentou e que explicou os seus propósitos.
  8. Ainda sem resultados, no dia 5 de Outubro a DGS actualizou as orientações sanitárias para os eventos culturais, no seguimento da nova fase de desconfinamento, que arrancou a 1 de Outubro. Nessas novas orientações, impõe-se a apresentação de certificado digital de vacinação, consoante as características dos eventos — a partir de 5000 pessoas em eventos ao ar livre ou de 1000 pessoas em salas fechadas. E submete-se a realização de eventos em recintos não-fixos, como os festivais, à autorização prévia de delegados de saúde — ou seja, mantendo sobre estes eventos um grau de incerteza que inviabiliza a sua programação, como assinalaram os promotores. Nenhuma destas decisões, nem sequer a diferença de tratamento para eventos de outra natureza (como discotecas), se sustentou em evidências que tivessem sido comunicadas ao país.
  9. Hoje, dia 21 de Outubro, os resultados dos eventos-piloto continuam por publicar. Passaram-se quase seis meses desde os primeiros eventos-piloto — uns 175 dias. Não se conhece qualquer informação complementar sobre o que justifica os sucessivos atrasos, os passa-culpas e as versões contraditórias entre autoridades públicas. Isto já envergonha.
  10. Para que não se julgue que esta incapacidade foi a regra internacional, olhe-se lá para fora. E, olhando, confirma-se: a situação portuguesa contrasta com a de vários países europeus, onde eventos-piloto se realizaram, onde os seus resultados foram apresentados e discutidos e onde a reabertura das actividades culturais obedeceu às evidências obtidas nessas experiências. Aconteceu em Espanha. Aconteceu no Reino Unido, com uma transparência exemplar. Aconteceu em França, com resultados detalhados publicados seis semanas depois. Aconteceu em muitos outros países. Não aconteceu em Portugal. Foi mesmo portuguesa esta incapacidade de organizar os eventos-piloto, recolher os dados, realizar as testagens e produzir resultados.
  11. Já o escrevi em Junho, numa versão inicial desta cronologia: em Portugal, é desolador constatar que as políticas públicas falham sempre que se requer método, disciplina, transparência e apresentação de resultados. Completo agora: é lamentável que situações destas, que exibem escandalosos graus de incompetência, passem sem um levantamento da opinião pública e, sobretudo, sem apuramento de responsabilidades políticas. A ministra da Cultura, após um fiasco desta dimensão, que se junta a outras incapacidades de apoio ao sector cultural (ausente do PRR), terá condições para se manter em funções? Eu diria que não. Mas o mais provável é ser eu quem está enganado: se em Portugal exigimos tão pouco de quem nos governa, então merecemos o pouco que recebemos.

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