Por esta altura do ano, é quase infalível: sou, como muita gente, tomado pelo desejo de partir, de viajar. O génio da língua alemã tem uma palavra para as formas mais extremas desse desejo: Wanderlust. Não peço, como pedia um poeta que convidava a amiga à viagem, uma destinação recheada de “ordem e beleza, / luxo, calma e volúpia”. Nem, como outro, ambiciono rumar para a Pasárgada, onde, “amigo do rei”, teria “a mulher que eu quero / na cama que escolherei”. Tampouco tenho ganas de caminhar longamente, como Jean-Albert Dadas, um canalizador de Bordéus que, no século XIX, tomado de um irreprimível desejo de andar a pé, vítima do que um psiquiatra chamou dromomania (do grego dromos, corrida), calcorreou a França inteira e, não contente com isso, prosseguiu as suas viagens, pelo mesmo meio, até Moscovo e Constantinopla. Não quero acabar como ele, internado num hospital por exaustão (e não só, imagino), nem tenho pernas para isso. E os tempos, inexplicavelmente, não andam propícios a obedecer aos conselhos dos dois poetas, que devidamente segui em saudosos dias de vinho e rosas. Quero apenas encontrar um lugar com menos barulho do que este. Preparo-me para uma semana, feito guarda-florestal budista improvisado, na Serra d’Arga, a meditar sobre o Darmapada, em busca da solução para o sofrimento humano, com a ajuda do canto dos passarinhos, antes deles se transformarem, com a noite, sem que a gente dê por isso, em morcegos.

O meu modesto nomadismo sazonal encontra este ano, no entanto, uma espécie de obstáculo espiritual – ou conceptual, se se preferir, para não sugerir tanto qualquer angústia extrema. É que, desde Fevereiro, uma coisa não me sai da cabeça: a terrível destruição humana provocada pela invasão russa da Ucrânia. Não quero com isto dizer, note-se, que me sinta na obrigação de abdicar dos prazeres possíveis por solidariedade com as vítimas da barbárie. Já negociei comigo, há muito tempo, as partes devidas a mim e ao mundo nestas coisas, e quero preservar aquilo que a mim mesmo me devo como favor. No passado, a agilização, como agora se diz, deste negócio colocou-me dilemas cruéis e seria abusivo pretender que a luta contra os demónios acabou sempre com uma vitória incontestável da minha boa consciência. A história, de resto, ainda continua. Nunca se sabe de certeza certa a extensão do egoísmo legítimo e fica-nos sempre a dúvida se não teremos ido longe demais.

Mas, enfim, suponho que é mais ou menos o destino de todos os seres humanos. A Bíblia e o resto da literatura que por inteiro dela deriva, embora às vezes disfarce, estão cheias de exemplos, ilustres ou menos ilustres, desta nossa condição. O que eu quis dizer acerca da guerra na Ucrânia é que a invasão russa e a barbárie da qual é feita – e que me enche de feios sentimentos face àqueles que contra Putin não tomam partido – são a própria negação do ideal de hospitalidade universal que é a condição mesma da própria ideia de viagem. Viajamos procurando ser bem recebidos. Não viajamos na esperança de que a nossa presença seja encarada com hostilidade. A hospitalidade é a condição de possibilidade da viagem. O precioso Vocabulário das instituições indo-europeias, do grande linguista Émile Benveniste, tem, no capítulo dedicado à hospitalidade, páginas excelentes sobre a evolução da relação entre as palavras latinas hostis e hospes, que esclarecem o que acabei de dizer sobre hospitalidade e hostilidade. Há obras de erudição que nos dizem muito sobre o nosso dia-a-dia e espero que me fiquem gratos por esta gentileza – ou que, pelo menos, não a levem a mal.

O tema da hospitalidade é igualmente um tema central dos escritos histórico-políticos de Kant, dos quais o mais famoso é o pequeno tratado sobre A paz perpétua. Os escritos histórico-políticos de Kant gozam, para o público comum que ouviu falar deles, de uma certa reputação de superficialidade. Hegel primeiro, depois Marx, e, finalmente, a pura e simples ignorância, são responsáveis por esta injusta fama. Na verdade, eles são um prodígio de acerto e subtileza. E são inteiramente “actuais”, como se diz. O que é, para um grande autor do passado, ser actual? É encontrar as suas questões, e as suas respostas, recolocadas, reactivadas, num tempo que é posterior ao seu, não por qualquer artificialidade, mas por uma necessidade própria a esse tempo.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Os escritos histórico-políticos de Kant têm por horizonte a ideia de paz perpétua. A primeira condição para que nos encaminhemos para esse horizonte é que cada Estado se dote daquilo que ele chama uma “constituição republicana”. A constituição republicana não se define por ser monárquica, aristocrática ou democrática: não se define pela natureza daqueles que detêm o poder no Estado. Define-se sim pelo modo de governar, e esse modo obedece, na constituição republicana, contrariamente ao que se passa na constituição despótica, ao princípio da representatividade. É o princípio da representatividade que funda o republicanismo de Kant. A instituição por cada Estado de uma constituição republicana é o passo propriamente político em direcção à paz perpétua.

O segundo passo, que poderíamos chamar histórico, reside na criação de uma federação dos Estados republicanos (na acepção de Kant). Seria a essa federação – Kant dá-lhe vários nomes: “Congresso permanente de Estados”, “Liga dos Povos” e ”União de Estados” –, e não, por exemplo, a uma monarquia universal, que caberia a elaboração de um verdadeiro tratado de paz perpétua, como coisa distinta dos anteriores tratados de paz, que não seriam, de facto, senão armistícios disfarçados. Mas, note-se, essa federação seria constituída por Estados soberanos. Kant, ao contrário do que certas modas nos querem fazer pensar, é um teórico soberanista que, sob muitos aspectos, prolonga Hobbes. Só essa federação de Estados republicanos soberanos estaria em condição de resolver aquilo que ele designa por um dos “problemas do homem que pensa”, a saber: a guerra.

Tudo isto poderá parecer muito formal. Acontece, no entanto, que, do mesmo modo que o formalismo da sua ética, que é real (o célebre “imperativo categórico”), é acompanhado de inúmeras considerações que o complexificam, introduzindo elementos que, como o desejo de felicidade, poderiam passar por contraditórios com ele (mas não o são, de facto), também os textos histórico-políticos de Kant abundam em considerações antropológicas que nos fornecem o verdadeiro substrato ao qual se aplicam as doutrinas da constituição republicana e da federação dos Estados. Assim, por exemplo, ambas as doutrinas têm de ter em conta a “insociável sociabilidade” dos seres humanos – a dupla e simultânea tendência destes para a aproximação e o afastamento. E dado que – postulado kantiano – a quantidade de bem e de mal no coração humano permanece inalteravelmente a mesma ao longo da história, é preciso jogar com as virtudes civilizacionais da dissimulação, que nos faz adoptar uma máscara que, com o tempo, imperceptivelmente se colará ao nosso próprio rosto. As nossas inclinações egoístas disfarçar-se-ão e desse disfarce resultará não certamente um progresso da moralidade nos nossos corações, mas, o que dificilmente poderá ser visto como desprezível, um progresso da civilização. Mais: a paz perpétua é um ideal do qual nos devemos aproximar “a pouco e pouco”, não de um só golpe, por decreto. Na terminologia de Kant, ela tem um estatuto regulador – serve de fio condutor para orientar o nosso pensamento – e não constitutivo: não descreve a realidade fenomenal tal como ela é.

Isto conduz-nos à hospitalidade universal. A própria forma esférica da terra obriga-nos a convivermos entre nós, a entrar em comunicação uns com os outros. Os barcos ligam os continentes. E os camelos, esses “navios do deserto” (sempre gostei muito desta imagem), ajudam-nos a atravessar os mais áridos territórios. O cosmopolitismo de Kant, que, de certo modo, prolonga o dos Estóicos, atribui um grande papel à noção de hospitalidade, ao “direito de um estrangeiro a não ser tratado com hostilidade em virtude da sua vinda ao território de outro”. Há, por assim dizer, um “direito de visita” universal, o “direito de hospitalidade”, que é um “direito cosmopolita”. Ora, a guerra, quaisquer que tenham sido os seus benefícios no passado da humanidade, pondo, como o comércio, os povos em contacto uns com os outros, funciona, agora que esse contacto se encontra estabelecido, como o mais terrível obstáculo à hospitalidade.

Saindo agora de Kant, e voltando ao meu problema. A invasão russa da Ucrânia representa o ataque de um Estado governado por uma constituição despótica, que ambiciona como única paz perpétua a paz dos cemitérios, a um outro governado por uma constituição republicana, que deseja a paz que pode ser atingida através de uma federação de Estados soberanos. É a Ucrânia que defende aqui a hospitalidade universal. E assistir ao seu sofrimento faz-nos duvidar da oportunidade de viajar quando a hospitalidade, condição da viagem, se encontra assim tão flagrantemente posta em causa. Permito-me um exemplo, quase obsceno pelo ridículo. Tenho um guia (Lonely Planet) da Ucrânia. O guia data de 2018. Não contém informações sobre a Crimeia posteriores a 2014. Mas contém informações actualizadas (à data) sobre o resto da Ucrânia. Desde Fevereiro que vou notando o que, no que o guia menciona, foi destruído pela selvajaria invasora. Os ataques à hospitalidade universal até por tão pueris processos se podem medir.

Bom, mas, como disse atrás, temos que levar a cabo essa eterna negociação com nós mesmos entre as partes que nos são devidas e as partes que são devidas ao mundo. E seria o último a condenar os heliotropismos próprios à época. Mais: admiro-os e invejo-os. Deixo de bom grado as indignações virtuosas às sensibilidades demonstrativas que por aí abundam. Eu próprio, na encarnação de guarda-florestal budista que por uns dias vou adoptar, émulo de certas personagens de romances beat que lia na adolescência, estarei longe de me sentir culpado. E, se surgirem problemas, espero que o Darmapada me ajude a resolvê-los. Com uma pequena ajuda dos passarinhos.