A solução encontrada pelo Governo para a RTP, que passou pela criação de um Conselho Geral Independente (CGI), tinha como principal objectivo diminuir o risco de governamentalização da estação do Estado – isto é, eliminar o potencial de interferência do poder político nas opções de gestão da RTP. Não é um objectivo menor, porque é bem conhecida a tentação dos governos (todos os governos) em controlar a RTP.
Acontece que o actual caso da transmissão dos jogos de futebol da Liga dos Campeões (que agora resultou na demissão da administração da estação) mostra que isso só foi conseguido em parte – competiu ao CGI pronunciar-se, mas o Governo foi incapaz de se manter à margem e criticou a administração. Mais ainda, o caso mostra também que, na prática, o modelo de gestão, sendo importante, não resolveu o essencial. É que, gerida ou não pelo Estado, com ou sem o Conselho Geral Independente, a RTP não está a prestar serviço público – está a concorrer com a SIC e a TVI. E o problema é e sempre foi esse.
Olhamos para o modelo de gestão da RTP e, no papel, tudo mudou. Mas ligamos a televisão e percebemos que, afinal, está tudo na mesma. Compare-se a grelha da programação da RTP1 com a dos canais privados: telenovelas, telejornal, futebol, programas de entretenimento (um de manhã, outro de tarde). A RTP1 concorre com os privados e, exceptuando os “big brothers” da TVI que nem a SIC se atreve a imitar, não há diferenças. Ora, das duas uma: ou isto é tudo serviço público, e não precisamos da RTP para o prestar porque temos a SIC e a TVI, ou isto não é serviço público e, portanto, a RTP não está a cumprir a sua missão.
Nenhum dos dois cenários é bom, sobretudo para nós que financiamos a RTP por via da conta de electricidade. Mas, no essencial, o que estes cenários demonstram é uma grande incapacidade em definir o que se pretende com “serviço público de televisão”. Ou seja, o que é que isso inclui de diferenciador, o que é que isso exclui em termos de programas televisivos e, sobretudo, de que modo esse conceito de serviço público se adequa às necessidades de portabilidade dos tempos actuais e futuros (compatível com vários dispositivos e suportes). Nesse sentido, o novo contrato de concessão não parece resolver o problema.
Já passámos o tempo em que o serviço público era, por definição, aquele prestado pelo Estado, porque o enfoque estava em quem prestava o serviço e não no serviço que era prestado. Hoje, na saúde (ADSE) e na educação (contratos de associação), o Estado paga a privados para que prestem serviço público – e, por exemplo no caso da educação, é o serviço educativo que é público, sendo indiferente para os alunos se a escola é propriedade privada ou do Estado. Por que não adaptar o mesmo modelo à televisão: se o Estado produzir um conteúdo televisivo de serviço público, que diferença faz ao espectador que ele seja transmitido na RTP em vez de na SIC ou na TVI? Nenhuma.
O ponto é mesmo esse. Hoje, bastaria ao Estado financiar a produção dos conteúdos audiovisuais que constituem serviço público – documentários, reportagens, programas de cultura geral ou outros – e acordar a sua transmissão em canais privados ou noutro tipo de plataformas. Ou seja, poderia o Estado colocar o enfoque do serviço público exclusivamente na criação de conteúdos (o que realmente interessa do ponto de vista do espectador), com a vantagem de assim poder fechar ou privatizar a RTP e, com essa poupança, financiar a criação desses conteúdos (em vez de, como hoje, suportar os custos da estrutura RTP).
Não é, obviamente, uma solução isenta de riscos. Mas, em política, tal coisa não existe. Veja-se que a opção seguida também tem riscos muito reais, nomeadamente o de, depois de tanta discussão, ficar tudo mais ou menos na mesma. Ora, perdoem-me a pergunta, mas foi para isto que não se privatizou a RTP?