Nasci, vivi e cresci em terras do Barroso, numa aldeia chamada Atilhó. Foi aí, enquanto menino e moço, num outro mundo, verde, azul, de muitas cores no céu, na terra e nas águas, nas pessoas e animais que passei a minha infância a brincar na rua, com os pares e na comunidade. A rua era, nesses tempos, o ATL das crianças. Éramos muitos. O eterno bando dos miúdos. Nas encostas dos montes, verdes de todos os tons, nos tapetes de carquejas e tojos de amarelo intenso, no roxo das urzes escorregávamos e dávamos arriscadas cambalhotas. Brincávamos com a natureza e na natureza. Com o imaginário e com a realidade. Sobre o chão da calçada, inclinada, jogávamos ao pião, ao espeto, à bola, à corrida com carros de tábua e rolamentos. Mesmo nos dias mais pequenos de frio e chuva, acendia-se a lareira e, depois do jantar, sentávamo-nos em banquinhos de madeira e ali ficávamos com os avós, irmão, ou pais a contar histórias do arco da velha. A aventura era o meu dia-a-dia e este aspeto da minha mais tenra idade ficou-me para a vida. Se tomarmos como verdadeira a afirmação do filósofo espanhol José Ortega y Gasset – “Eu sou eu e minha circunstância” – este facto torna-se relevante para compreender a pessoa que fui sendo e que se transformou na pessoa que hoje sou.

Eu sou a minha Infância! Desta Infância lembro ainda um grande amigo, a quem a professora do 1º ciclo rotulou de “deficiente”. Rótulo que perdurou durante muitos anos. Este amigo chegava todos os dias à escola montado no seu cavalo imaginário que atrelava minuciosamente no grande portão da escola e, quando tentávamos subir o seu cavalo imaginário, ele olhava-nos, incrédulo, e com um ar assutado, dizia-nos: “é só a brincar”.

Esta história, mais que outras, interpelava-me e marcou-me profundamente. Talvez por ela, quando me faziam a pergunta clássica, “O que queres ser quando fores grande?”, respondia convictamente: “Quero ser professor, para ajudar as crianças”.

Com 19 anos, contra ventos e marés, fui honrar esta minha convicção de infância, contrariando as espectativas da família, ingressei no curso de educação de infância, o dito curso “de mulheres” para desalento dos meus pais.

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Ao longo da formação académica, fui sentindo aqui e ali réstias dessa limitação de pensamento de alguns e preconceito generalizado em relação ao facto de ser homem na educação de infância como que se isso fosse ou não determinante para o sucesso nessa atividade profissional. Não raras vezes me questionaram sobre o que realmente eu gostaria de ser. Ou se não preferia ser professor de um outro qualquer nível e disciplina.

No ano de 2004 tornei-me Educador. Orgulhosamente educador de infância. Com a certeza de que o serei para sempre.

Contratado nesse mesmo ano por uma instituição religiosa, Centro Social Paroquial de Chaves, numa cidade pequena, que de alguma forma desafiava a norma ao contratar um homem educador, chegou a hora de integrar a minha equipa pedagógica em que o trabalho no masculino nunca teria sido pensado e onde diariamente me relembravam todas as características atribuídas à educação de infância na sua génese em Portugal.

Aqui fui surpreendido com a recetividade das crianças, com as suas espontâneas demonstrações de afetividade, concretizadas no abraço, no contacto visual e nas interações verbais. Dos pais e encarregados de educação notei alguns olhares incrédulos, revelando um nível de estranheza com a minha presença na sala.

Logo no início da minha carreira como educador de infância, sou confrontado com esta afirmação de um Pai de uma criança do meu grupo: “Estou espantado nunca tinha visto um educador de infância homem, mas acho que é bom ter aqui um homem. Não sei é se consegue ouvir as crianças como uma mulher educadora…”

Esta afirmação tem-me acompanhado no decorrer do meu percurso profissional. Reconheço a explícita insegurança e preocupação dos pais pelos cuidados e a atenção aos filhos. Eles querem garantir que os seus filhos estão em boas mãos e a receber o cuidado e atenção necessários. No entanto, a afirmação revela uma visão estereotipada de que apenas as mulheres são qualificadas para cuidar e educar as crianças.

De forma geral, a sociedade considera estranha a presença de um Educador de Infância, homem, que trabalha com crianças dos zero aos seis anos. A educação de infância é um espaço de atuação docente maioritariamente feminina e a presença de homens educadores, de acordo com o relatório Educação em números 2019, da Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência, é de apenas 1%.

Devo confessar que desde o início fiquei ciente das minhas capacidades e da vontade que tinha em começar a caminhada, mas também dos contornos e obstáculos duma viagem que se adivinhava atribulada, especialmente no que diz respeito às questões de género. Estava ciente de que a luta pela igualdade de género é uma causa importante e justa, e estava disposto a enfrentar esses desafios e a superar esses obstáculos.

A implementação da educação de infância em Portugal remonta ao século XIX, quando surgiram os primeiros estabelecimentos destinados ao cuidado e educação das crianças mais novas. No entanto, estes cuidados eram exclusivamente destinados às mulheres, consideradas as principais responsáveis pela educação e pela proteção das crianças.

Durante o Estado Novo (1933-1974), os homens foram impedidos de desenvolver atividades profissionais consideradas tipicamente femininas, o que incluía o trabalho de educador de infância. Com o advento da revolução de Abril e a posterior democratização do país, houve uma maior abertura para a igualdade de género e a valorização do trabalho masculino em áreas consideradas femininas.

Atualmente, a formação dos educadores de infância enquadra-se no âmbito da formação geral de professores que reconhece a necessidade de existir um perfil de desempenho transversal a todos os professores/educadores (Decreto-lei nº 240/2001), mas também um enfoque nas especificidades saliente no perfil específico para o desempenho da profissão (Decreto-lei nº 241/2001). O perfil do educador de infância é construído nos processos de formação e não é natural ao género feminino.

O meu modo de fazer pedagógico

As crianças, por intermédio de perguntas simples e autênticas, como: “Tu não tens um trabalho? Estás sempre aqui a brincar com os meninos”, revelam eficazmente o seu pensamento sobre o meu modo de fazer pedagógico. Como educador de infância, procuro responder ao desafio de criar territórios onde as crianças se sintam seduzidas e envolvidas pelo prazer de brincar. Reforço o brincar com materiais diversificados, naturais, não estruturados, que fornecem um grande número de possibilidades de exploração e informações, numa profunda conexão com as minhas experiências e memórias de infância. As crianças precisam desse brincar sério e comprometido com a certeza de que a atividade lúdica, enquanto estado primordial da infância, se torna propulsora do desenvolvimento humano.

É neste particular que pensar o espaço da educação de infância, a forma como ele se torna lugar socialmente construído pelas crianças e adultos que o habitam, a partir da vida e das relações que aqui são vividas, exige que pensemos o binómio cuidar e o educar como o desenvolvimento saudável de uma criança. Escola é este espaço das relações, afetos, caminho de encontro com o outro, lugar para viver o inesperado, encantar-se com detalhes e descobrir o mundo. É importante destacar que o trabalho dos educadores de infância vai além do estereótipo de cuidar, envolvendo aspetos pedagógicos e de desenvolvimento da criança. Portanto, é necessário desconstruir essa associação entre a profissão e o género feminino, para que mais homens se sintam encorajados a ingressar nesta área. A inclusão de mais homens como educadores de infância pode trazer benefícios para o desenvolvimento das crianças, proporcionando diferentes referências de género e rompendo com preconceitos e estereótipos tradicionais.

Com dezanove anos de serviço que tenho, contam-se treze anos completos como educador de infância na resposta educativa da educação pré-escolar e seis como educador na creche. Um percurso marcado pela motivação em que abri as janelas das oportunidades, dei primazia ao diálogo, valorizei a escuta ativa da voz das crianças, das famílias, da equipa e da comunidade… Pensar o meu percurso, distanciando-me e avaliando o que até hoje vivi, faz-me crer que o salto qualitativo dado pela instituição que me acolheu e as famílias de todas as crianças que passaram por mim, se distância da imagem criada pela maioria da sociedade civil.

Sinto que tenho ao longo dos anos mostrado a toda a comunidade a forma como, enquanto educador homem, construí práticas de qualidade junto das crianças, realizando um trabalho de relação e cooperação junto das famílias, comunidade educativa e equipa pedagógica, demonstrando que o homem, tal como a mulher, tem um papel significativo.

Hoje, quando revejo o meu percurso e relembro aquele testemunho de um pai: “Não sei é se consegue ouvir as crianças como uma mulher educadora” faço silêncio, penso e confesso que talvez esta observação me tenha despertado para ser um educador de escuta atenta. Estive recentemente com este pai e com o filho Pedro (nome fictício) que esteve comigo durante 4 anos. Conversámos sobre as conquistas do Pedro. “…O meu filho tinha algumas dificuldades em interagir com os outros. Ao longo dos quatro anos que esteve consigo percebi que ele conquistou o seu espaço no grupo, cresceu em autoestima, não tinha medo de arriscar. Tomava tantas iniciativas e resolvia tantos problemas, com tanta vontade, uma criança completamente autónoma. Posso dizer-lhe que foram os anos mais felizes do Pedro e os meus e da minha mulher também. O Nuno envolveu-nos em muitos projetos, acolhia as nossas sugestões e desafiou-nos a sermos pais sem medos e os meus receios iniciais por ser homem desfizeram-se depressa.”

O Pedro olha para mim e, com um brilhozinho nos olhos, convida-me a ver no telemóvel do pai alguns vídeos que gravou, há alguns anos, a dizer poemas, a cantar canções que aprendeu no jardim de infância e a dizer que gostava muito de mim: – “Fui tão feliz na nossa escola. Gostava tanto de fazer os projetos e decidir o que queria fazer…” disse-me o Pedro. As crianças escutam a vida em todas as suas formas e o Jardim de Infância é este espaço privilegiado para o encontro e convivência, onde as relações detêm a primazia do ser. Os planos fechados dão assim lugar à flexibilidade de propostas, num pensamento de projeto. Ser este Educador exige que sejamos corajosos e consistentes; exige paixão e emoção, razão e sentimento, compromisso e trabalho árduo, “também pode nos dar muito; mais do que tudo, pode-nos dar o profundo senso do que representa ser educador” (Rinali, 2006).

Estas palavras do Pedro e do seu Pai têm ressoado em mim e acredito que o processo tem sido sustentado em componentes afetivas, no respeito pela voz das crianças, das famílias, da equipa, da comunidade, reconhecendo e partilhando saberes, respeitando os ritmos, aceitando e apoiando decisões.

Posto isto, um dos meu objetivos como educador de infância homem é também garantir que os pais e sociedade compreendam e reconheçam que os homens também podem ser cuidadores e educadores de qualidade.

Não é por ser homem ou mulher que se está mais preparado para atuar com as crianças, mas a formação que capacita o profissional, independentemente do género. Com os olhos postos na educação de infância, nos fundamentos da pedagogia da infância é fundamental entender que tanto homens como mulheres têm um papel essencial na educação e no desenvolvimento das crianças. As crianças precisam de modelos de ambos os sexos para o seu crescimento saudável e equilibrado. Portanto, ser educador de infância é uma escolha que vai além das expectativas da sociedade. Para mim, ser educador de infância é o melhor remédio na busca da felicidade. Não me arrependo de ter escolhido esse caminho, mesmo que seja diferente do que muitos esperam. A satisfação e o sentido que encontro nesta profissão são suficientes para me fazer sentir realizado e feliz. Claro que isso dá muito trabalho, mas é de uma satisfação impagável!

Educador de infância, mestre em ciências da educação e professor de educação especial. Formador e escritor de história infantis. Foi vencedor da menção honrosa Educação de Infância no Global Teacher Prize Portugal 2023.

‘Caderno de Apontamentos’ é uma coluna que discute temas relacionados com a Educação, através de um autor convidado.