Recentemente o Estado promoveu a dedicação plena, com o intuito de fixar médicos, pagando-lhes melhor em troca de uma maior disponibilidade para o sítio onde trabalham. No caso dos hospitais, o efeito pretendido é reter profissionais, diminuir o recurso a médicos externos tarefeiros, e evitar que os médicos tenham de ir “dar uma perna” num outro hospital (eventualmente privado) para compor o seu orçamento familiar, fazendo daquele modo as suas horas suplementares no hospital de origem. A solução, porém, poderá ser insuficiente para reter a especialidade médica mais fustigada com a urgência, a Medicina Interna (MI). Mas o que é a Medicina Interna?

A MI é a especialidade que tem a visão mais abrangente que existe do doente hospitalizado (não cirúrgico) e é a especialidade-mãe das restantes especialidades médicas. O internista tem o conhecimento e a experiência de Neurologia, Cardiologia, Infecciologia, Cuidados Intensivos, entre outras, necessárias para lidar com a maioria dos doentes que precisam de hospitalização. A MI é a especialidade que que eu quero ter a olhar por mim na avaliação de uma doença aguda com potencial de agravamento, ou na existência de vários problemas de saúde em simultâneo. A MI identifica o problema na urgência, decide a hospitalização e tratamento. Esta articula-se com outras especialidades para complementar necessidades dos doentes em certas técnicas médicas, exames de diagnóstico e orientações terapêuticas. Como os idosos são aqueles que, em número, mais doenças agudas graves e mais patologia concomitante apresentam, a MI assiste uma população especialmente idosa nas suas enfermarias. A maioria dos doentes em fim de vida terminam os seus dias num hospital ao cuidado da MI.

Apesar da importância e da versatilidade clínica, esta especialidade atrai cada vez menos jovens. Dever-se-á talvez não só à fustigação atrás referida, sobretudo em períodos de pico na procura, mas também a uma gradual perda de identidade naquele que é o papel da MI no hospital. À medida que foram emergindo as restantes especialidades médicas, foi ficando acantonada, sobretudo no acompanhamento de doentes geriátricos e doentes em fim de vida, frequentemente não internados em serviços de especialidades por quem eram acompanhados.

Em situações de contingência, é a especialidade que sistematicamente interrompe a sua atividade programada (ex: assistência ao internamento) para acudir às necessidades da urgência. Imaginem um ladrilhador a começar uma obra. Este começa a trabalhar na segunda-feira, e continua na terça-feira. Na quarta e quinta não vai trabalhar na obra, porque esteve de piquete quarta-feira à noite. Só voltará à obra na sexta-feira, onde, entretanto outras pessoas tiveram a substituí-lo. Agora imaginem o que é isto acontecer todas as semanas, na assistência aos doentes internados, não uma, mas duas vezes por semana. Não só existe o risco de o trabalho não ficar bem feito, como existirão atrasos devido à interrupção da normal condução da assistência.

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Do ponto de vista do mercado de trabalho, sendo uma especialidade que, em geral, a população não conhece, e com tempos de consulta muito demorados, a sua procura na saúde privada é mais baixa, menos valorizada e rentável, quando comparada com outras especialidades com nomes mais sonantes e óbvios, que produzem muita consulta, exames complementares e cirurgias. Excetua-se o caso do trabalho de urgência, onde a procura é grande em ambos os setores, público e privado. Esta questão não é de somenos: as oportunidades de trabalho em certas especialidades são maiores, nomeadamente na oportunidade de sair do SNS para o privado. Daí que o tratamento para o problema das especialidades médicas dificilmente será igual para todas elas.

Não obstante existirem quase 50 especialidades inscritas na Ordem dos Médicos, os médicos de MI compõem mais de 50% do staff médico das urgências, e são responsáveis por mais de 40% de todos os internamentos, além do apoio que dão às restantes especialidades, nomeadamente cirúrgicas. Apesar desta importância, a população em geral (incluindo políticos e muitos decisores) não conhece a especialidade, e não existe uma estratégia nacional para a mesma, perante a desertificação dos concursos e o acumular de problemas. Em 2023, menos de metade das vagas para formação em Medicina Interna foram ocupadas, quando 70% das outras especialidades tiveram total ocupação.

O futuro de todas as especialidades condicionará o SNS, mas o da Medicina Interna condicionará certamente de forma mais imediata. Daí que a MI precise de um plano nacional para ser uma especialidade mais valorizada, cativante e  figura central na gestão do doente internado no sistema de saúde. E para não ser a válvula de escape em períodos de maior afluência. Importa dizer que a própria especialidade deu um tiro no pé quando foi contra a criação da especialidade de medicina de urgência. Essa especialização permitiria reter mais médicos nas urgências (oferecendo-lhes uma maior perspetiva de carreira) e a generalização das equipas fixas, e evitaria a interrupção sistemática da atividade programada a que médicos de MI são sujeitos, todas as semanas.

E é por isto, por haver uma atividade, uma vida (privada e profissional) permanentemente atropelada por urgências, que são cada vez mais vagas da especialidade por preencher. Com grande risco para o SNS.