No local onde trabalho eu e os meus colegas de serviço prestamos assistência a vários milhares de utentes com doenças crónicas, sobretudo pessoas com infecção por VIH e hepatites, mas também muitos com doenças agudas. A maioria deles são portugueses, mas a percentagem de estrangeiros pode chegar a 75% se analisarmos apenas os que entraram no sistema nos últimos anos. São sobretudo pessoas em idade ativa (com idades entre os 25 e 45 anos), e que vêm de todo o lado: Brasil e restante América Latina, África lusófona, Índia, Nepal e Bangladesh, mas também alguns nómadas digitais e reformados provenientes de países com um PIB per capita mais confortável, como Reino Unido, França, Estados Unidos e Israel. Sim, preocupa-me a sustentabilidade de um sistema de saúde, já por si problemático, mas cuja estratégia futura, já se percebeu, não se prende apenas com a existência de mais dinheiro, mas com um financiamento mais inteligente, melhor planeamento e gestão. E cujas questões de envelhecimento da população, crescente complexidade da medicina e retenção de profissionais, estão no topo, a milhas de distância, em termos do seu impacto no SNS, vs. questão da imigração.

O incremento no volume de doentes estrangeiros tem causado algum stress em termos de recursos humanos e (eventualmente) a nível financeiro. Mas esse impacto não é uniforme, porque os que imigram são sobretudo jovens, e porque felizmente em Portugal, doenças infecciosas, cuidados materno-infantis ou as urgências, têm um acesso (um pouco) mais facilitado. Pelo que outros setores do SNS não apresentam aquele nível de impacto, e o calvário na espera das consultas e cirurgias eletivas é o mesmo, provavelmente pior, versus a população nacional. É falso que estes doentes que assistimos imigraram para procurar cuidados de saúde. Um exemplo paradigmático disso é o dos imigrantes brasileiros, que são de longe, a população imigrante atualmente mais preponderante nas nossas consultas: vêm com diagnóstico e acompanhamento prévios, clinicamente estáveis e sob tratamentos modernos de primeira linha, graças a uma rede pública de saúde e a um acordo entre o estado brasileiro e uma das multinacionais farmacêuticas, que permitiu a nível local uma redução de 70% do valor do medicamento.

Existem algumas injustiças e outros problemas. Por exemplo, é notório que uma minoria de utentes sob medicação crónica são estrangeiros que não vivem nem trabalham em Portugal. Mas porque algures no tempo conseguiram ter uma morada e alguma regularização neste país, continuam a aceder aos cuidados de saúde e medicamentos cedidos pelo Estado português, precisando apenas de vir ao hospital de quando em vez para aquele efeito. É injusto, porque deveria ser nos países onde trabalham e descontam que deveriam ter os seus cuidados de saúde. Também é injusto que, enquanto alguns doentes são provenientes de países ricos e têm um acesso livre e gratuito ao SNS português, o inverso não se verifique: se um português quiser ter acesso a cuidados de saúde nos EUA, por exemplo, terá que ter um dispendioso seguro, ou pagar uma surreal quantia de dinheiro à entrada do hospital, enquanto que um reformado americano em Portugal tem direito a medicamentos gratuitos que custam milhares de euros por ano. Depois de alguns relatos que iam passando de boca-a-boca, entre médicos, há cerca de um ano soube-se publicamente sobre uma investigação, por parte da PJ, de mulheres oriundas do Paquistão que aterravam em maternidades portuguesas, apenas com a finalidade de terem o seu parto no SNS.  Existem pessoas que abusam do sistema, mas esses, felizmente raros, existem em todo as culturas. Embora, por alguma razão biológica, tendemos a tolerar menos os abusadores de fora. Na minha opinião, os abusadores devem ser tratados todos por igual.

Do ponto de vista socioeconómico, costumo refletir que os recursos que utilizamos com estes imigrantes são os necessários para garantirmos a entrada de uma massa trabalhadora jovem, para este que é o 5.º país mais envelhecido do mundo. O SNS é pois uma rede que deve permitir, entre outros, que o imigrante em Portugal possa ter alguma segurança no salto que deu para procurar uma vida melhor. Por cada doente imigrante que assistimos no nosso hospital, existirão outros 9 sem doenças conhecidas, e que nem sequer usufruem do SNS porque não têm, em primeiro lugar, médico de família. Grande parte dos utentes estrangeiros que seguimos têm o ensino secundário, e muitos têm o ensino superior. Trabalham sobretudo no setor da restauração, hotelaria e limpezas, na construção civil e no cuidado a idosos. Fica a dúvida se, com as qualificações que muitos destes imigrantes apresentam, não estaremos a desperdiçar trabalhadores que poderiam estar a alavancar indústrias mais diferenciadas. Alguns imigrantes são empreendedores, e têm já pequenas empresas constituídas na área do comércio, digital, hotelaria e construção civil, onde por vezes empregam, inclusivamente, outras pessoas. Menos de 1% são trabalhadores ou trabalhadoras do sexo.

Em 2022, os imigrantes contribuíram com 1,861 milhões de Euros para a segurança social, tendo recebido desta instituição apenas 257 milhões de euros. São os imigrantes provenientes de países pobres que, proporcionalmente, contribuem mais, uma vez que são mais em número e porque têm menos algumas das situações não-contributivas, como sejam aquelas de emprego em modo remoto (para  empresas no estrangeiro) ou situação de residência para gozo da reforma, que acontece quase exclusivamente nos provenientes de países mais ricos. Segundo o Observatório das Migrações, 46% dos residentes Portugueses contribuem para a Segurança Social, enquanto que esse número ascende a 69% na população residente estrangeira. A epidemia de VIH, sobretudo nos primeiros anos em Portugal, atingiu milhares famílias portuguesas com jovens dependentes de drogas injetáveis, infelizmente muitos não conseguiram reorganizar a sua vida e ficaram dependentes da família e do estado. Tudo correto e 100% nacional.

Nos anos 70 viviam em França quase 800,000 portugueses. Ao dia de hoje, sabemos que 30% dos jovens portugueses estão a viver no estrangeiro. Foram para países onde terão, em princípio, melhores condições de vida. Enquanto familiares e amigos desses jovens, aquilo que esperamos é que eles sejam tratados com respeito e profissionalismo, se tiverem uma aflição de saúde, e não descuidados por terem um sotaque diferente, olhos ou cabelos castanhos. Em Portugal, diariamente e enquanto médico, tenho a possibilidade de poder transmitir, em nome do estado português, um pouco de atenção a uma pessoa que tem uma doença, está longe de casa, da sua família e quase sempre mais preocupado em manter o trabalho. Enquanto alguns já se adaptaram (e bem) aos seus direitos adquiridos, muitos continuam a demonstrar, todos os dias, uma especial gratidão por estarem a ser assim tratados num país estranho, e por se sentirem acolhidos e dignificados. A esses, dá-me um prazer especial dizer-lhes que não têm nada a agradecer, pois aqui neste país, aquele é um seu direito.

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