O caso da indemnização na TAP tem muitas vertentes graves, entre elas a política, a ética e a moral. Mas um dos aspetos mais graves do que se passou com a agora ex-secretária de Estado do Tesouro é verificar que falharam uma série de procedimentos de escrutínio, previstos em quadros legais, e que vão desde o momento do pagamento da indemnização de 500 mil euros para sair da TAP até à sua escolha para o Governo, passando pela sua nomeação para a NAV. Dizer que não se sabia é tão ou mais grave do que saber. Pelo menos, se soubessem, ministros, secretários de Estado deste e do anterior Governo, entidades públicas várias, podiam limitar o problema à falta de sensibilidade política ou a um sentimento de “quero, posso e mando”. Não saberem é negligência, incompetência ou tratar os assuntos de Estado como se fizessem todos parte de um clube de amigos.

Comecemos pela decisão de pagar a indemnização. Tudo parece começar, pelo que é hoje contado, com o pedido da presidente executiva da TAP Christine Ourmières-Widener ao ministro das Infraestruturas Pedro Nuno Santos para negociar a saída da administração de Alexandra Reis, com quem se dava mal. E com isto podemos imaginar que pode ser relevante a probabilidade do cenário de o problema ter sido tratado como se estivéssemos num clube de amigos.

E é logo aqui que começa o primeiro acto que não cumpre os procedimentos. Estamos perante a decisão de destituir uma administradora, tema de accionista em qualquer empresa e especialmente sensível e importante numa empresa que está a ser ajudada pelos contribuintes e a pedir sacrifícios aos trabalhadores. A presidente executiva devia ter feito esta solicitação às duas tutelas que a TAP tem: o ministro das Infraestruturas e o ministro das Finanças, que então era João Leão. Quem passou por empresas públicas sabe que até temas que podem ser de pura gestão operacional exigem o “sim” das Finanças.

Tanto quanto sabemos Christine Ourmières-Widener não o fez. Mas havia uma segunda hipótese: o ministro das Infraestruturas informar o seu colega das Finanças. Também não aconteceu, afirma João Leão. Pelo que sabemos, Pedro Nuno Santos autorizou que se iniciasse o processo negocial para a saída de Alexandra Reis e delegou o assunto no secretário de Estado das Infraestruturas Hugo Mendes que também, ao que é dito, não informou o seu colega das Finanças, o secretário de Estado do Tesouro Miguel Cruz.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

A TAP informou o secretário de Estado das Infraestruturas da conclusão do processo negocial e, de acordo com o comunicado de Pedro Nuno Santos, Hugo Mendes “não viu incompatibilidades entre o mandato inicial dado ao Conselho de Administração da TAP e a solução encontrada”. E, aparentemente, não informou ninguém. O problema estava resolvido, terá pensado.

Ainda nesta fase, em que o assunto esteve a ser negociado entre advogados, há um terceiro crivo que falhou, o do administrador financeiro da TAP Gonçalo Pires. O Ministério das Finanças é que escolhe os administradores financeiros das empresas públicas – como é o caso agora da TAP – e estes reportam às Finanças, em geral ao secretário de Estado do Tesouro. Também o administrador financeiro não pareceu sentir necessidade de informar Miguel Cruz, o então secretário de Estado do Tesouro, sobre o que se estava a passar e especialmente a despesa extraordinária que ia ter com o mínimo de 500 mil euros que iria entregar a Alexandra Reis (faltam os impostos).

A partir de 4 de Fevereiro de 2022 a informação é pública. A TAP comunica à Comissão de Mercados de Valores Mobiliários que Alexandra Reis renunciou ao mandato, informação que, na sequência de se conhecer a indemnização, a empresa corrigiu, afirmando agora que a renúncia foi da iniciativa da TAP. Com a informação pública, entramos na fase em que é o Ministério das Finanças a falhar. E estamos no quarto nível de escrutínio falhado. Começando pelos serviços, há pelos menos três organismos que podiam ter perguntado à TAP o que se passava: a Parpública, a Direcção Geral do Tesouro e Finanças e a UTAM – Unidade de Acompanhamento das Empresas Públicas. Ninguém, tanto quanto sabemos, parece ter tido a preocupação de se informar ou, no mínimo, de avisar o secretário de Estado Miguel Cruz para que tomasse a iniciativa de perceber o que se passava numa empresa tão sensível como a TAP. A renuncia de uma administradora, a meio de um mandato, suscitaria a curiosidade de qualquer accionista e, por tudo o que conhecemos, deveria ter acendido as luzes vermelhas no caso da TAP. Mas não aconteceu.

Chega o novo Governo e há mais uma quinta possibilidade de escrutínio, em várias oportunidades. Em Abril é publicado o parecer da CreSAP – entidade que avalia os candidatos a lugares do Estado – revelando que o secretário de Estado das Infraestruturas propôs, a 11 de Abril, que Alexandra Reis fosse presidente da NAV – menos de um mês e meio depois ter saído de uma empresa do sector que ia passar a regular. E no parecer da CreSAP não existe uma única questão sobre as razões que levaram Alexandra Reis a sair da TAP, considerando-a com o perfil adequado. E aqui temos, nesta fase, a primeira oportunidade perdida de se fazer o escrutínio por uma entidade independente. Em Maio, o artigo do Expresso assinado por Anabela Campos revela que Alexandra Reis vai para a NAV e é aqui que se fala pela primeira vez de “uma indemnização milionária” referida por fontes da TAP. O Ministério das Infraestruturas foi questionado e não confirmou a informação. Segunda oportunidade perdida para perceber que o assunto podia ser um problema. No Ministério das Finanças, agora já com Fernando Medina como ministro e João Nuno Mendes como secretário de Estado do Tesouro e das Finanças, estes também não viram nem tiveram ninguém que os avisasse do artigo do Expresso – dos seus assessores aos serviços do Ministério –, perdendo-se a terceira oportunidade.

E chegamos à sexta possibilidade de escrutínio. Em Novembro, quando Fernando Medina convida Alexandra Reis para integrar a sua equipa podia ter tido a curiosidade de perguntar porque saiu da TAP, uma empresa que está a ser ajudada pelos contribuintes e tem de ser bem gerida para cumprir o plano de Bruxelas. Não perguntou e assim se perdeu mais uma oportunidade. Até o Correio da Manhã, na véspera de Natal, colocar 500 mil euros na sua manchete e as campainhas finalmente começarem a tocar. Deixou de ser possível “não saber”.

Quatro entidades públicas, o administrador financeiro da TAP, três ministros e três secretários de Estado, juntando este e o anterior Governo, não foram capazes de fazer o devido escrutínio à empresa do Estado que enfrenta um desafio de sobrevivência depois de os contribuintes lá terem injectado mais de três mil milhões de euros. Os ministros e secretários de Estado argumentam que não sabiam. Do anterior Governo, João Leão e de Miguel Cruz vieram dizer que de nada sabiam. Se não sabiam, deviam saber, deviam ter perguntado. Também Fernando Medina diz que não sabia, mas devia saber.

E agora, não sabendo, a pergunta que se devem fazer é: porque é que essa informação não lhes chegou? Porque é que nenhuma entidade da administração pública – e são três, pelo menos, a Parpública, a DGTF e a UTAM –, com responsabilidade de acompanhar as empresas do Estado, os informou da saída da administradora e perguntou as razões? E porque é que a CreSAP não perguntou nada a Alexandra Reis? Não se quer acreditar que tudo isto aconteceu porque a posição ideal, a que defendia melhor os seus estatutos, era não saber nem querer saber, com medo dos ministros ou para agradar ao Governo.

Se o escrutínio das empresas públicas está a ser feito desta maneira displicente, por incompetência, negligência, amiguismo ou para não criar problemas ao Governo, temos todas as razões para nos preocuparmos. Até o Governo precisa de se preocupar. O PS, através do Governo, capturou todo o aparelho de Estado, feriu entidades que são supostas fazerem um trabalho independente, garantindo o cumprimento da lei – temos visto isso ao longo dos últimos sete anos. E hoje pode ter a trabalhar pessoas que apenas querem agradar ao “chefe”. E está a ser vítima da escolha que fez de partidarizar a administração pública ou de se sentir já dono disto tudo.