Numa altura em que estamos a celebrar os cinquenta anos do 25 de Abril, enaltecendo os valores da liberdade e da democracia, e valorizando todas as conquistas sociais, económicas e políticas alcançadas no Portugal democrático, penso que este é também um momento fulcral de apelo à reflexão enquanto ato de cidadania, para que possamos debater e contribuir, com ideias para o futuro do País nas próximas cinco décadas. Embora sendo um exercício prospetivo, antes, é necessário um olhar para o passado, não numa perspetiva saudosista, mas numa lógica de perspetiva e rigor, para compreendermos de onde partimos há cinquenta anos e até onde chegámos. E daqui, para onde poderemos ir enquanto país e sociedade.

Portugal evoluiu muito nos últimos cinquenta anos, em todas as áreas. É inegável. Da saúde à educação, da economia à cultura, dos hábitos privados aos costumes. Para as gerações mais velhas e com memória de tempos anteriores ao 25 Abril, a perceção de evolução é ainda mais abissal. Ainda recentemente, e apenas a título de exemplo, partilhava durante um evento uma das minhas memórias, de quando frequenta a escola primária e tinha colegas que iam descalços para as aulas. Era uma realidade relativamente comum no Portugal de há 70, 60 e 50 anos. Hoje, tal nível de pobreza é absolutamente impensável, não apenas devido à melhoria substancial das condições de vida, mas também porque foram desenvolvidos mecanismos sociais e de solidariedade de apoio aos mais desfavorecidos, juntamente com uma consciencialização coletiva para a necessidade de assegurar índices mínimos de desenvolvimento humano.

Portugal mudou, e mudou para melhor. Modernizou-se e integrou-se na Europa e as gerações mais jovens abraçaram a globalização para potenciar todo o seu potencial. Naturalmente, existem desafios associados ao presente e que se estenderão ao futuro. Um dos principais problemas nas sociedades ocidentais, e que tem particular incidência em Portugal, tem a ver com o envelhecimento da população e com todas as implicações socioeconómicas que daí advêm. O país precisa, por um lado, de novos modelos para reforçar as políticas públicas no âmbito da longevidade e, por outro, de criar condições estruturais para reter os mais jovens em Portugal.

Em matéria de longevidade, os desafios são imensos. Antes de mais porque implicam a mudança de modelos e de mentalidades que interliguem diferentes campos, nomeadamente a Ação Social e a Saúde, sendo esta em particular uma área que me é muito querida, quer pela minha formação e atividade profissional desde sempre, quer pela minha experiência de gestão da coisa pública e política, nomeadamente enquanto Ministra da Saúde. Mas também na Ação Social e no Terceiro Setor tenho vindo a cultivar uma relação muito próxima, primeiro enquanto Presidente da Cruz Vermelha Portuguesa e agora, mais recentemente, na qualidade de Provedora da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, o que me tem permitido reforçar uma convicção de há muito a respeito da  necessidade urgente de se contemplar estas várias vertentes, de forma integrada, nas futuras políticas públicas da longevidade.

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Assim, um dos desafios presentes e futuros tem precisamente a ver com a prestação de cuidados sociais e de saúde numa população que viverá cada vez mais anos e que se pretende que viva com mais qualidade. A intervenção terá de ser cada vez mais de forma integrada e compreensiva.

É um desafio imenso e que implicará uma forte componente de criatividade e inovação, porque passará por uma resposta de intervenção junto da população, abrangendo todo o ciclo de vida, seja numa lógica de atuação precoce, seja preventiva. Esta abordagem permitirá a melhoria da qualidade na vida dos cidadãos, sobretudo em idades mais avançadas, e a otimização do Sistema Nacional de Saúde, nomeadamente a potenciação dos finitos recursos do SNS.

Neste quadro integrado de resposta aos desafios da longevidade, também o setor social terá de acompanhar a evolução do conhecimento, seja no diagnóstico ou na terapêutica, atendendo às caraterísticas demográficas da população. A inovação social implica novos conceitos, produtos, serviços e processos que se centram no cuidado à pessoa, tendo em conta a condição socioeconómica dos utilizadores/utentes e os mecanismos de produção, distribuição e organização das respostas sociais.

No futuro do país vejo como natural e desejável a aproximação natural dos profissionais de saúde aos da área social, constituindo um desafio à gestão da causa pública. Só assim se conseguirá assegurar um Serviço Nacional de Saúde mais sustentável, quer na qualidade do serviço prestado, quer na gestão financeira e logística, com foco principal no bem-estar do utente. E, neste quadro de atuação, o setor social, já com uma tradição secular na prestação de cuidados de saúde no apoio de proximidade, será cada vez mais um parceiro fundamental na contribuição para o bem-estar dos portugueses. É este o trabalho que já estamos a desenvolver na Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, precisamente com o objetivo principal de acentuar a integração da intervenção social com as necessidades de saúde ao longo das várias fases da vida, para que o paradigma da longevidade possa corresponder às melhores expetativas que as gerações presentes têm para o futuro do País.

Mas não é só o desafio com as questões da longevidade que hoje temos de considerar; a infância e juventude necessitam de uma atenção redobrada em função dos novos/antigos problemas de saúde, em que as perturbações do comportamento e saúde mental têm hoje cada vez maior expressão. Sabemos que com uma melhor qualidade de vida em criança e jovem teremos adultos e velhos mais saudáveis e é sob esse paradigma que a Santa Casa continuará a trabalhar nos próximos anos.

Ana Jorge, médica pediatra, ex-ministra da saúde (2008-2011) e atual provedora da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, é membro do Clube dos 52, uma iniciativa no âmbito do décimo aniversário do Observador, na qual desafiamos 52 personalidades da sociedade portuguesa a refletir sobre o futuro de Portugal e o país que podemos ambicionar na próxima década.