Por muito que vulgarmente se discuta a eleição do Primeiro Ministro (PM) ou Governo, as eleições legislativas não servem esse propósito. Nas legislativas apenas estão a votos os 230 deputados que compõem a Assembleia da República (AR). Por muito que outras posições possam ser consequentes, falar de legislativas com outro foco que não a constituição da Assembleia é enviesar o voto, desvirtuando o que está em escrutínio. Após eleições, o quadro eleitoral resultante é analisado pelo Presidente da República que convida a formar governo o(s) partido(s) que aparentemente têm mais condições de governabilidade. Portanto, a discussão sobre a eleição, indireta, de futuro PM, governo ou presidente da AR (este último cargo eleito mais diretamente pelos deputados) é acessória e turva o processo de escolha dos cidadãos.

Os problemas e muitas das condicionantes da lei eleitoral portuguesa são conhecidos. Não existe apenas a herança de um sistema eleitoral pensado para transição entre autoritarismo e democracia. Existe um sistema adequado à eleição da Assembleia Constituinte e que, posteriormente, foi acomodado a eleições políticas e legislativas. Uma lei eleitoral com sucessivas tentativas falhadas de revisão e que apresenta alguns problemas de representação, condicionamento de escolha e de proximidade aos eleitores. Para aprofundar o assunto (concordando-se ou não com as respostas aos problemas identificados) nada como ler o ensaio O sistema político português de Manuel Braga da Cruz, numa edição da Fundação Francisco Manuel dos Santos. O vasto conjunto de problemas discutidos são reflexo de uma lei eleitoral desatualizada, aprovada em 1978 e que precede até a expressiva revisão constitucional de 1982.

A desconexão entre as expectativas dos eleitores para a eleição e o que está efetivamente a votos resulta numa eleição disforme. Durante o processo, valorizando diferentes fatores (legítimos), os eleitores alinham o voto de forma distinta. Os eleitores podem alinhar o seu voto (i) numa lógica de poder legislativo a nível nacional, orientando o voto em função do arranjo expectável para a Assembleia da República ou em função do programa eleitoral de um partido – independentemente dos seus candidatos; (ii) em função da representatividade do seu círculo eleitoral, condicionando o voto pelos candidatos a deputados; ou mesmo (iii) numa perspetiva de preferência de PM e/ou governo.

Contudo, a lei eleitoral pode condicionar uma escolha em função do círculo eleitoral em que se vota. Um eleitor do litoral tem a escolha menos condicionada podendo orientar o voto pelo equilíbrio entre forças partidárias ou até de representatividade de uma pequena franja. Mas, sendo eleitor de um distrito menor, o eleitor tem incentivos a transferir o seu voto para PS ou PSD para que sinta o seu voto útil (mesmo sendo um típico não votante destes dois partidos).

Com isto percebemos que o sistema é disforme, fazendo concorrer abordagens e visões para uma mesma eleição. Acresce que o atual sistema eleitoral penaliza a dispersão dos votos por não existência de um círculo nacional de fecho – quase que deixando votos de fora. Vejamos a eleição de 2019: se o partido que ficou prestes a colocar um deputado nos diversos círculos eleitorais fosse sempre o mesmo, teria ~220 000 votos (~4,5%). Este mesmo partido não elegeria nenhum deputado. Contudo, um outro partido poderia eleger um deputado com ~22 000 votos (~0,45% e 10x menos), se alcançados num só círculo eleitoral.

No imediato, na leitura das intenções de voto e resultados, será necessário acautelar o efeito deste viés. A prazo justifica-se a revisão do sistema eleitoral, para que não desconsidere votos e, acima de tudo, para que alinhe melhor o tipo de eleição, órgãos eleitos e poderes das instituições. Uma qualquer revisão, apenas possível com mobilização social, deve ser transparente e dar nota dos seus riscos, implicações e vantagens.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR