Uma das questões mais pertinentes do nosso tempo está em saber se continua a justificar-se a antinomia entre liberalismo e conservadorismo, ou se esta não é já uma dissensão mais artificial do que real, havendo até, no limite, uma plena complementaridade de princípios, idéias e valores entre essas duas filosofias políticas. Por outras palavras, a questão é a seguinte: ser liberal impede que se seja conservador e ser conservador exclui que se seja liberal? Julgo que a resposta a essa questão é hoje a de que um liberal só o será se também for um conservador, enquanto que um verdadeiro conservador não poderá deixar de ser um liberal.
Antes de mais, há alguns equívocos muito antigos que estão na origem desta dissensão e que convém dissipar. O primeiro deles é ideológico e prende-se com um certo soi-disant conservadorismo oitocentista, saído das obras de Joseph de Maistre e Louis de Bonald, que identificava o conservadorismo com o Ancien Régime, e defendia as monarquias pré-constitucionais assentes sobre o princípio do «direito divino dos reis» e a plena sobreposição entre o Trono e o Altar. Em Portugal também cá o tivemos, no século XIX, com D. Miguel e, no século XX, com António Sardinha e o Integralismo Lusitano. Acontece que este “conservadorismo” estava, por paradoxal que pareça, muito mais próximo do jacobinismo revolucionário francês, contra o qual julgava ter-se rebelado, do que de uma ordem social espontânea que pensava (como Sardinha) defender. Porquê? Porque tal como aquele jaboninismo era, essencialmente, uma revolta voluntarista contra o mundo e uma proposta construtivista de racionalmente o transformar em conformidade com um plano, também as doutrinas de Maistre, Bonald e Sardinha mais não foram do que reações de repúdio face ao novo tempo que emergia do Iluminismo. E, não por acaso, do mesmo modo que o ciclo jabobino francês foi marcado pelo Terror, também o miguelismo aplicou desapiedadamente o método terrorista, quando começou a intuir que só pela violência seria capaz de evitar o mundo moderno contra o qual se posicionava. Em contrapartida, o verdadeiro pensamente liberal-conservador deste tempo, defendido por pensadores como Edmund Burke e Alexandre Herculano, queria manter não as instituições do absolutismo, mas recuperar as liberdades que lhe eram anteriores e que este tinha destruído, fazendo delas o verdadeiro fundamento do novo ciclo do liberalismo constitucional e do Estado de direito. A esse propósito Herculano lembrará que “o despotismo é que é moderno, e a liberdade antiga” e Burke dirá que a Revolução Liberal Inglesa (1688) foi feita para preservar as antigas tradições da liberdade e da religião inglesas, e não para fazer tábua rasa das instituições sociais existentes, como pretendera Revolução Francesa. Em Portugal, no dealbar da nossa Revolução Liberal de 1820, Manuel Borges Carneiro, erradamente considerado um «jacobino», publicara, logo nesse ano, um opúsculo laudatório da revolução que tinha por título Portugal Regenerado em 1820. Dito doutro modo, o liberalismo oitocentista não foi necessariamente revolucionário e disruptivo: pelo contrário, pretendia manter e conservar a ordem social espontânea das instituições da antiga liberdade que o Absolutismo e o Despotismo Esclarecido, essas sim filosofias políticas revolucionárias e fraturantes, tinham posto em causa.
O equívoco é, por outro lado, também histórico, e, em certa medida, até mais político do que ideológico, porque remonta à velha rutura entre whigs e tories ocorrida no tempo de William Gladstone e Benjamin Disraeli. Na realidade, os dois políticos ingleses da segunda metade do século XIX marcaram, cada um deles à sua maneira, os então partidos liberal e conservador do seu país. Gladstone foi efetivamente um liberal clássico na política e talvez um dos poucos governantes na história do mundo que aplicou no governo os valores da liberdade em que verdadeiramente acreditava. Extinguiu a maior parte dos impostos e das taxas que vigoravam na Inglaterra (calcula-se que cerca de 95%), abriu as fronteiras ao comércio internacional à revelia das cassandras que temiam o «livre-cambismo», pugnou pela arbitragem nos conflitos de interesses entre os Estados em contraposição à guerra, e acreditava piamente na ética da responsabilidade individual como cimento construtor de uma ordem social pacífica. Em contrapartida, o líder do partido tory e seu rival de sempre, Benjamin Disraeli, quando foi primeiro-ministro seguiu políticas proteccionistas no comércio internacional, aumentou impostos, criou legislação trabalhista abundante. Esta divisão, então muito vincada entre liberais (whigs) e conservadores (tories), marcou profundamente a separação de águas entre as duas famílias políticas, e permaneceu por longos anos no espírito de muitos autores, ao ponto de Friedrich Hayek costumar qualificar-se a si próprio como um liberal à “velha maneira whig”, remetendo essa definição para o partido do tempo de Gladstone, em contraponto ao espírito conservador e protecionista dos tories de então. Esta separação profunda de águas já não se justifica nos dias de hoje, e deixou mesmo de fazer qualquer sentido, a partir do fim do primeiro quartel do século XX, com o quase total desaparecimento do Partido Liberal inglês, cujo espaço foi em parte ocupado pelo Labour, desde 1900. Eum consequência disso, mitos liberais ingleses voltaram à casa que fora também a sua antes do abandono de Gladstone (que também tinha sido dirigente do Partido Conservador, pelo qual chegou a exercer cargos ministeriais) provocado pela profunda antipatia que ele tinha por Disraeli e pelas suas políticas. E, em boa verdade, o melhor da tradição liberal inglesa reencontrou-se, desde então, nos tories, e foi protagonizada por líderes como Churchill e Thatcher, talvez hoje, à sua peculiar maneira, até pelo exótico Boris Johnson.
Outro equívoco igualmente importante, este da responsabilidade dos liberais e menos dos conservadores, resultou da crítica do mesmo Hayek ao conservadorismo, editada em jeito de posfácio (Why I’m not a Conservative) ao seu importante livro The Constitution of Liberty. Nesse texto o autor austríaco dizia afastar-se do conservadorismo essencialmente pelos três seguintes aspetos: em primeiro lugar, por causa do receio da mudança e da tendência que os conservadores manifestam para manterem tudo como está; depois, devido à “paixão pela autoridade e a sua falta de compreensão das forças económicas”; e, por último, em razão da hostilidade que eles demonstram em relação ao “internacionalismo”, e o decorrente nacionalismo excessivo que os caracteriza. Hoje em dia, a maior parte destas críticas, compreensíveis no início da segunda metade do século XX, caiu por terra, desde logo se atendermos às políticas seguidas nos governos dos três líderes políticos conservadores mais marcantes do período que a esse ciclo se seguiu: Ronald Reagan, Margaret Thatcher e José Maria Aznar; ou, já nos nossos dias, as lideranças dos novos governos dos países da Europa de leste, ainda há pouco comunistas, como a Estónia, ou da nossa mais próxima Irlanda, que abandonou, não há muito, as políticas socialistas. Embora conservadores ou ligados a partidos eminentemente conservadores, todos eles pugnaram pela liberdade económica, pelo comércio internacional e pelo cosmopolitismo, tendo contribuído para mudar prufundamente o status quo socialista, estatizante e imobilista dos seus países.
Um quarto e último erro que tem separado conservadores e liberais, este, ao contrário do anterior, da inteira responsabilidade dos primeiros, reside na convicção de que o liberalismo é filho da Revolução Francesa e que, por isso, é revolucionário, jacobino e anti-clerical. Este grave erro não distingue as duas grandes tradições liberais europeias – a anglo-saxónica e a francesa, ficando-se somente por parte da última – e foi responsável pelo afastamento de muitos conservadores europeus do liberalismo, que preferiram assim aproximar-se de forças políticas mais conservadoras, como as democracias-cristãs italiana e alemã, ainda que esta última não ande longe do liberalismo clássico. Seria fastidioso reproduzir aqui, em contraponto a esta convicção, a lista dos liberais que foram profundamente crentes, muitos deles católicos, como Acton e Burke, ou até mesmo Alexandre Herculano, que apesar do seu violento anticlericalismo não desmerece figurar na mesma lista. A questão religiosa que opôs liberais e crentes, sobretudo os primeiros aos católicos nalguns países da Europa Continental nos séculos XIX e XX, nada teve ou tem a ver com a filosofia liberal e a religião, mas com a necessidade de proceder à laicização do Estado e da política, que tardava a acontecer nesses países, com prejuízo para a sociedade, o Estado e a própria Igreja. Nos seus fundamentos teóricos, o liberalismo não é, de modo algum, anticlerical. Pelo contrário, Alexis de Tocqueville, um liberal inquestionável, defendeu, no A Democracia na América, que o espírito da liberdade que emergia nesse novo país, resultava essencialmente da tolerância religiosa, da total liberdade de culto e do pluralismo e da concorrência existente entre as várias confissões religiosas, ao contrário do que ainda então acontecia na maior parte dos países europeus. Religião e liberdade, neste ponto de vista, não só não se opõem como inclusivamente se pressupõem e dependem uma da outra.
Por último, aquela que é a essencialidade do liberalismo e do conservadorismo, que é a forma como cada uma dessas filosofias políticas concebe a ordem social e os processos da sua transformação, a meu ver também a principal e mais significativa convergência que entre eles existe. Na verdade, os conservadores temem a mudança política porque, como diz Michael Oakeshott, a função do governo não deverá ser a de “sonhar”, mas a de “governar”. Ou seja, a função do governo não é a de ser um agente de transformação política que projete as convicções ideológicas dos seus titulares, na medida em que isso faria dele um protagonista sectário e não um árbitro geral. Nessa medida, essa função, segundo um conservador como Oakeshott, consiste em amainar as paixões políticas dos homens, não “atiçando os fogos do desejo, mas abafando-os” em vez de os exaltar . Por outras palavras, o governo deve ser um árbitro da liberdade individual e não um protagonista politicamente vinculado a uma ideologia. Deve constituir-se como um fator de pacificação social em vez de ser um “instrumento de paixão” de certos grupos. Acresce que, para Oakeshott, “a única forma adequada de governar é estabelecer e aplicar regras de conduta”: o governo não deverá preocupar-se “com pessoas concretas, mas com atividades, e apenas à sua propensão de colidirem com as outras”; não deve utilizar a soberania para a imposição, ainda que democraticamente sufragada, de um modelo ideológico de sociedade. Não estamos, por conseguinte, muito distantes do que Hayek considerava dever ser a função ordenadora e não construtivista do governo, que estava em determinar “regras de justa conduta” de caráter geral e abstrato e não em fixar autoritariamente particularidades ideológicas de grupo. A sociedade liberal não impõe a ideoligia liberal, sublinhe-se, mas permite que todos e cada um possam seguir os seus objetivos de vida em respeito pelos objetivos dos outros. A sociedade liberal não é uma sociedade ideológica dirigista que imponha o liberalismo, mas uma sociedade de liberdade individual em que cada um poderá prosseguir os seus ideais. A função política do governo consiste assim, seja para liberais seja para conservadores, em criar as condições necessárias e suficientes para o exercício da liberdade e dos planos de vida de cada um, e não uma sociedade ideologicamente uniforme e dirigida.
Por outro lado, se já não subsistem impedimentos impossíveis de serem dirimidos entre liberais e conservadores acerca da natureza e das funções do governo, há que convir igualmente que os conservadores têm sido, nos últimos anos, muito sensíveis à teoria económica liberal, concretamente na defesa da propriedade, da liberdade de comércio, da baixa tributação e de um intervencionista estatal mínimo. Na verdade, as reformas económicas mais profundas têm resultado da ação de alguns governos conservadores, como já acima julgamos ter evidenciado. Em contrapartida, têm os liberais muito a aprender com a visão pessimista, ou realista, que os conservadores têm da natureza humana e da política. Esta pode facultar-lhes, a meu ver, um plus de análise política da qual muitas vezes se costumam inadvertidamente distanciar e que muita falta lhes faz. Na verdade, a convicção liberal de que as sociedades humanas não são teatros permanentes de guerra hobbesiana e que a cooperação e a sociabilidade são propensões naturais entre os homens, não exclui a necessidade de perceber a dimensão política e conflitual da vida humana, a ambição do poder e a permanente luta pela conquista do domínio que a soberania faculta e incentiva. Infelizmente, a análise liberal do comportamento humano em sociedade remete muitas vezes para segundo plano, quando não ignora, a função do político e a importância do seu aparelho monopolista que é o Estado. Mas, em contrapartida, a História ensina-nos que a presença do político, da soberania, por outras palavras, do Estado, é imanente às sociedades humanas, seja qual for o estágio da sua evolução, ou as latitudes que tenhamos em consideração. A observação liberal não deverá prescindir dela, ou melhor, até só se compreende por causa da sua existência, já que sem o Estado o liberalismo seria desnecessário. Ora, a isto os conservadores respondem com uma análise realista do poder político. Segundo eles, a política quase nunca se realiza no colorido com que os seus protagonistas pintam os cenários floreados retóricos das suas propostas, mas quase sempre e só na pura e dura ambição pelo poder, na sua conquista e manutenção a qualquer preço. Por conseguinte, conservadores como Oakeshott defendem que é ilusório pensar-se que o governo serve para realizar os “ideais” daqueles que os políticos supostamente representam, mas apenas e só para “governar” no sentido acima descrito. A Escola liberal da Public Choice, que aplica critérios de análise económica à ação dos agentes públicos, não só não anda longe disto, como já beneficiou – todos beneficiámos – dessa visão crua das coisas. O liberalismo terá, então, assinaláveis vantagens em aproximar-se do realismo político conservador, do mesmo modo que, noutras matérias, o conservadorismom ganhará em aproximar-se do liberalismo. Eles não constituem, como no passado se acreditava, doutrinas políticas muito distantes entre si, sendo até frequentemente assimiláveis e sobrepostas ideologicamente.