Tem sido voz corrente dizer-se que a grave crise que atravessamos demostra a falência das ideias liberais e a necessidade da emergência do estado como princípio ordenador da vida social. São dois os argumentos aduzidos: o recurso insistente das pessoas aos serviços públicos de saúde, esperando que venha daí a sua salvação, e a enorme pressão da opinião pública para que o governo tome medidas protetoras da comunidade. Muitos têm sido os intervenientes na comunicação social e nas redes a dizerem-no. Catarina Martins e o seu séquito de enragés alucinados fizeram do tema um mantra. E até António Costa, que vinha revelando uma sensatez e ponderação pouco habituais, não deixou de entrar no cortejo, sugerindo, no parlamento, que o Iniciativa Liberal mudasse de nome para «Iniciativa Estatal». Neste último caso, deve ter sido do cansaço.

Desconsiderando o facto de que pessoas responsáveis (não necessariamente aqueles que têm responsabilidades) deveriam, numa tão dramática circunstância como esta, procurar a conjugação de vontades e de esforços, em vez de acirrarem os ânimos e provocarem divisões com picardias ideológicas e ajustes de contas, quem diz isto não sabe o que diz, está de má fé ou ambas as coisas. É que liberdade, liberalismo, estado e governo não são necessariamente conceitos e realidades históricas incompatíveis. Bem pelo contrário.

Em primeiro lugar, porque foram os liberais que inventaram o estado contemporâneo, o que se sustenta sobre os pilares da lei e da constituição, cuja proteção eles julgam estar exclusivamente ao seu esmerado cuidado. Lembro, porém, os mais distraídos que o «contrato social», o tal vínculo tacitamente assumido por todos os indivíduos que provocara o abandono do «status naturalis» e a criação do «status civilis», a troca do «estado de natureza» pela «sociedade política», nasceu no Iluminismo Liberal e do espírito, entre alguns outros filósofos, de John Locke. E por que motivos entendia o autor do Segundo Tratado sobre o Governo Civil que os homens tinham decidido abdicar de uma parcela razoável da sua liberdade individual para se sujeitarem à autoridade de um governo? Porque, segundo ele, só uma entidade que lhes fosse superior poderia assegurar os seus direitos fundamentais à vida, à propriedade e à segurança. Em suma, a liberdade.

Depois de John Locke, muitas gerações de liberais se seguiram e todos disseram sensivelmente o mesmo: porque não vivermos em sociedades de anjos mas de homens, o estado e o governo são necessários para suprir as incapacidades humanas de defesa própria do que deverão ser os seus direitos fundamentais elementares, sem os quais não existirá nem dignidade, nem igualdade, nem trabalho, nem educação, nem coisa alguma que permita a realização do indivíduo. Para que estes valores possam vir a materializar-se, a proteção eficaz da vida, da liberdade, da propriedade e a oferta de segurança comunitária são indispensáveis. Encontramos estas convicções em autores liberais tão diferentes entre si como Adam Smith, Alexis de Tocqueville, Edmund Burke, Alexandre Herculano, Benjamin Constant, John Stuart Mill, Ludwig von Mises, Friedrich Hayek, Robert Nozick, ou até mesmo Ayn Rand, frequentemente confundida como putativa matriarca de uma outra tradição política que é o libertarismo anarquista americano de Lisander Spooner, Albert Jay Nock e, sobretudo, de Murray Rothbard. Que os doutos comentadores políticos e as senhoras do Bloco desconheçam os postulados teóricos essenciais do liberalismo, que o não saibam distinguir do anarquismo, que desconsiderem, no fim de contas, aqueles que são os mais importantes fundamentos das sociedades liberais, onde vivem prosperamente e em liberdade, compreende-se. Que António Costa, primeiro-ministro de Portugal, ignore que governa uma sociedade assente sobre os princípios da liberdade e um estado que integra a União Europeia, organização supranacional que foi criada segundo os postulados do liberalismo, com o fim de criar um mercado único de livre-concorrência e de propriedade privada, é que já é mais preocupante. Mas nada que umas horas de leitura, tão adequadas ao atual estado de confinamento compulsivo em que nos encontramos, não possam resolver.

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Por tudo isto, os liberais não devem inibir-se de pedir, ou melhor, de exigir ao estado que defenda e proteja a sua vida, a sua liberdade e a sua propriedade. No fim de contas, foi para isso que o criaram e são também eles quem, com o dinheiro dos seus impostos, mais de que o sustentam. Os liberais não só têm o direito de o reclamar, como a obrigação de serem particularmente exigentes para com o estado e o governo quando falham, como tantas vezes nos falham na segurança, na justiça ou na saúde. É um pouco como teria dito Filipe II de Espanha, primeiro de Portugal, quando alguém lhe insinuava que ele não tinha efetivo direito à coroa portuguesa: «Mas como, se a herdei, a conquistei e a paguei?».

Mas há um segundo aspeto mais perturbador neste raciocínio estatizante e inevitavelmente totalitário e coletivista (Catarina Martins já nem se inibe de apelar a um novo PREC que regresse às nacionalizações), e que, não fosse a violência com que os liberais têm sido atacados ao mais alto nível político, desde logo pelo primeiro-ministro, deixaria para mais tarde e me escusaria a referir, neste momento: é que, ao contrário do que diz o segundo “argumento” que tanto utilizam, não é a ordem social privada que está a falhar às pessoas e aparenta poder vir a falir, mas a ordem pública do Estado. É, de facto, o SNS, onde trabalham mulheres e homens de extraordinário valor e coragem, que se encontra sem capacidade de resposta para o que aí pode vir, do que se queixam doentes, enfermeiros e médicos, apesar de António Costa afirmar que nada lhe falta. É a Linha SNS 24, que deixa pessoas infinitamente penduradas nos telefones, sem atendimento. São os hospitais públicos, cujos responsáveis denunciam não ter capacidade de resposta para os doentes que certamente terão de receber. São os ventiladores que não existem, as camas, as máscaras, o álcool, as luvas de proteção e até os mais básicos desinfetantes que não estão à disposição de quem deles precisa, porque, pura e simplesmente, não foram adquiridos em quantidades suficientes para enfrentar uma calamidade que atempadamente soubemos que vinha aí. Já para não falar no que era, apesar de tudo, mais fácil: a preparação de um plano estratégico de resposta à chegada da pandemia, com posições e linhas claras de orientação, que, pura e simplesmente, não existiu. Recordem-se, a este propósito, as absurdas declarações dos responsáveis do Conselho Nacional de Saúde Pública, desde logo de Jorge Torgal, a desvalorizarem a ameaça já com a pandemia declarada, fazendo-o a um nível intelectualmente tão rasca como o de um qualquer Bolsonaro. Ou as hesitações em manter ou fechar as escolas, que num dia eram para ficar a funcionar e, no dia seguinte, tiveram ordem de encerramento. Ou, também, o tempo imenso que levou até que Marcelo reunisse o Conselho de Estado para decidir se declarava ou não o estado de emergência, como se as emergências devessem aguardar pelas praxes institucionais.

Há, contudo, sobre esse dito “argumento”, um dado muito esclarecedor, de resto insuspeito, porque apresentado pelas próprias autoridades: dos doentes e infetados, o estado e a saúde pública cuidarão diretamente, em internamento hospitalar, apenas de 5%, aqueles que forem mais graves. 15% terão acompanhamento médico à distância. E 80%, repito, 80% dos infetados ficarão a seu cargo, a tratarem-se nas suas casas ou nas de quem os acolha, nas instituições de solidariedade ou de voluntariado social, nas igrejas e nas famílias, acompanhados por médicos ou enfermeiros que possam contratar, ou por aqueles que generosamente se organizaram em grupos espontâneos de profissionais de saúde para prestarem graciosamente aconselhamento e apoio a quem dele precisar. Dito doutro modo, e ao invés do que afirmam os propagandistas do estatismo, é a ordem social privada, e não a pública, que está a garantir e que garantirá proteção à esmagadora maioria dos infetados por esta maldito vírus, que deveria unir em vez de desunir, e que devia fazer compreender, a todos, que uma sociedade desenvolvida e humanista, próspera e livre, tem de viver do esforço, da criatividade, do talento, do rasgo e do risco individual. Enfim, da aventura de ser humano, e não do voluntarismo dirigista e bacoco de uma pequena elite de iluminados que arrogantemente se lhes quer substituir.

Hoje, como sempre no passado, só a liberdade nos fará sair dos escombros em que estamos soterrados. Só ela será capaz de reconstruir o nosso ideal de vida.