Numa passagem ocasional de veraneio pela cidade de Aveiro, deparei casualmente com um exemplar da revista francesa Éléments pendurado no escaparate de um quiosque central. Para quem não saiba, a Éléments é uma velha publicação, já com quase quarenta anos de idade (teve início em 1978), da responsabilidade de um grupo de intelectuais-políticos franceses de direita não alinhada (GRECE – Groupement de Recherche et d’ Études pour la Civilisation Européenne), que a si mesmos de denominavam de «Nouvelle Droite». O objetivo destas pessoas, que, para além dessa publicação, editavam uma outra com pretensões academicistas, a Nouvelle École, consistia em renovar radicalmente a imagem e o conteúdo da direita francesa e europeia, apostando numa via gramsciana de antecipar o “poder cultural” a qualquer tentativa de conquista do poder político e do aparelho de Estado.
A «Nova Direita» surgiu, assim, na década de 70 do século passado, numa época em que quase ninguém se dizia de direita. Desde logo, pelo estigma cultural, que levava a crer que a inteligência e a sensibilidade tinham residência fixa à esquerda e que pela direita vegetavam trogloditas simiescos com dificuldades em ler um jornal desportivo do começo até ao fim. Esta direita nova propunha-se demonstrar que, afinal, a grande cultura, ou, pelo menos, parte significativa dela, encontrava-se no pensamento europeu antigo e renascentista, atualizado por figuras do final do século anterior (séc. XIX) e do presente (séc. XX), da qual ela se pretendia apropriar, como Nietzsche, Carl Schmitt, Julien Freund, Pareto, Sorel, na filosofia e teoria política, Louis Rougier, pela aversão ao cristianismo, Evola, Abellio e Guénon, no esoterismo tradicionalista, Céline, Junger, Brasillach e Koestler, na literatura, Konrad Lorenz, na Etologia Humana transposta para uma mais do que duvidosa Sociobiologia Política, de que Yves Christen, ainda hoje ativo no grupo, era o principal intérprete e divulgador.
A narrativa ideológica do grupo concebia a «civilização europeia» como um valor em si mesmo pelo qual a «nova direita» se propunha lutar: «pour la civilisation européenne» era, e continua a ser, o leitmotiv da Éléments e representa uma séria declaração de intenções e princípios. As raízes profundas da sua tradição política encontravam-se na cultura greco-romana clássica, no animismo e no politeísmo dessas antigas civilizações, que o cristianismo supostamente destruíra, e nos valores profanos e heréticos do Renascimento. A «Nova Direita» encostava-se, assim, à irreligiosidade da esquerda marxista (mas não exatamente ao anticlericalismo desta), e essa foi uma das características que fez com que a sua influência tivesse sido muito diminuta no nosso país. Jaime Nogueira Pinto e António Marques Bessa procuraram moldá-la à cultura e à história política portuguesa, com a excelente revista Futuro Presente, que, apesar do seu bom nível, não obteve particular reconhecimento das elites políticas. Também a opus magnum da Nova Direita francesa, o livro Vu de droite. Anthologie critique des idées contemporaines (1977), de Alain de Benoist, teve direito a edição portuguesa, que intencionalmente excluía o último capítulo da obra original, que exaltava as raízes pagãs da civilização europeia e literalmente crucificava a tradição judaico-cristã.
Por entre os vários personagens que animavam o grupo francês era, de facto, o autor de Vu de Droite quem sobressaia e pontificava. Intelectual erudito, Benoist era, e continua a ser, um genuíno gramsciano de direita, convencido que está, e sempre esteve, de que é no plano cultural e das ideias que se trava a verdadeira batalha política. Na sua mundovisão, a civilização europeia carecia de um novo Renascimento, de um regresso às origens pré-cristãs, profundamente abaladas por dois inimigos maiores: o cristianismo, culpado do fim do mundo antigo e da derrocada dos seus valores, e o liberalismo, responsável pela tragédia da democracia igualitária moderna. De facto, para o novo Gramsci da direita, tinham sido o liberalismo iluminista e o constitucionalismo democrático que conduziram a Europa à perda da sua grandeza civilizacional, transformando-a numa reles macaqueação do “imperialismo de mercado” norte-americano. Assim, do mesmo modo que atacou o marxismo, a Nova Direita moveu todas as suas capacidades e energias contra o pensamento liberal clássico e a democracia, sua filha, sua herdeira e o seu pecado capital. Chegados ao último quartel do século XX, a Nova Direita renegava a «revolução conservadora e liberal» de Reagan e Thatcher, desvalorizada como um produto de importação estranho à civilização europeia e perigoso para ela. Foi nesse exato momento que, ainda muito jovem, a Nova Direita me deixou definitivamente de interessar.
Hoje, Benoist agravou o seu antiliberalismo. A última obra que publicou em 2019, não hesita em chamar-se Contre le libéralisme: La société n’est pas un marché. A aversão ao «mundo moderno», judaico-cristão e burguês, que o liberalismo simboliza, permanece o grande inimigo desse renascimento mítico de uma Europa pré-cristã. A degenerescência do liberalismo resulta do “reino da quantidade” em que o seu individualismo submerge, ignorando o conjunto social. Para Benoist, o liberalismo será uma espécie de contabilidade política avessa ao espírito, egoísta e cega ao homem enquanto ser social. O indivíduo que o liberalismo propõe, como centro de toda a dimensão humana e política, é, na visão de Alain de Benoist, o «homo economicus» do fim do século XIX, uma espécie de animal pavloviano que reage somente a estímulos consumistas e que vive integralmente divorciado do social e do político. Em forma de síntese, Benoist escreverá, no editorial do número da Éléments que me chegou às mãos, que o objetivo derradeiro do liberalismo é despolitizar a sociedade, negando a «essência do político» de que falavam Schmitt e Freund, que se realiza no Estado soberano.
A verdade dos factos é que a «Nova Direita», que, prudentemente, nunca nos quis dar um seu modelo político concreto de referência, rejeita aquela que é a mais legítima argamassa com que se erigiu e solidificou a civilização europeia moderna: o consensualismo pactício do Tomismo, dos filósofos cristãos seus discípulos da Segunda Escolástica, mormente de Francisco Suárez e Luís de Molina, que conceberam a sociedade política no homem e para o homem e da ideia do «pactum societatis», a partir qual nasceriam as preocupações democráticas sobre a legitimidade do poder, os seus limites necessários à felicidade humana e o constitucionalismo liberal moderno que as realizou. Este é o sentido do individualismo liberal que o Iluminismo aportou para a modernidade: o homem como o fim do político e não o político como um fim separado do homem. Este é o significado do constitucionalismo liberal: o pacto social celebrado livremente por indivíduos livres, que veem reforçada, através dele, a sua liberdade, passando a ser detentores de direitos face ao poder público e não somente sujeitos de obrigações.
No último número publicado da Éléments, ao longo desse mesmo editorial, Benoist disserta sobre a «ditadura», aquela que, segundo ele, vivemos em resultado do que chama as «formes autoritaires de libéralisme», mas também sobre a «ditadura» enquanto suspensão temporária necessária da ordem político-constitucional legal, colhida da figura da magistratura extraordinária da velha República Romana (509-27 a.C.), com a qual os romanos antigos procuravam precaver e resolver as situações de emergência social e política. Colocando-se perante o dilema de como se configuraria hoje uma transformação salvadora de uma França esmagada pelo “pensamento único da ditadura democrática”, Benoist dá uma resposta que só pode surpreender os incautos: não é de um «homem providencial», de um César, que os franceses (e os europeus) precisam, mas de «un peuple consciente de lui-même, d’une seconde Révolution française et d’un Comité de salut public». Explicando de forma mais simples: a salvação viria do Clube de Saint-Jacques, de Maximilien de Robespierre e do Grande Terror niilista (imagina-se que, pelo menos, simbólico…) da ditadura do Comité que com ele lançou a França no caos entre Julho de 1793 e o mesmo mês do ano seguinte.
Alain de Benoist não é um liberal. Não é um cristão. Não é um democrata e não gosta do mundo ocidental em que vive… de pé entre as ruínas, desde que a perversão do cristianismo e do individualismo iluminista o perverteram. Não é, em suma, um homem de direita, como a direita deve ser vista e entendida se quiser elevar-se no plano dos princípios e das ideias. Benoist, e a Escola de pensamento político que criou, é, ainda que o tenha por muito tempo negado, um filho dileto do jacobinismo, ao qual finalmente se rendeu. Para Benoist a liberdade é um conceito difuso, realmente inexistente no plano de uma factualidade social que vive e se perpetua no conflito hobbesiano, do qual só poderá libertar-se pelo decisionismo metajurídico de um chefe político que, na excepcionalidade do exercício da sua missão, se coloca para além do bem e do mal.
Esta direita que influenciou e, ao que julgo saber, tomou uma importante quota parte do aparelho de poder das sucessivas formações partidárias do clã Le Pen (apesar de Benoist sempre ter dito que nunca votou em Marine), não serve de modelo para uma sociedade aberta, fundada no primado da lei e que aspire à liberdade. Curiosamente, quero crer que, se alguma vez o Chega conseguir abandonar os sound bite da política menor em que se viciou e se alcançar uma doutrina, será por aqui que caminhará, não obstante as reiteradas confissões de fé do seu líder André Ventura.