A frase é célebre e certeira: “Memórias de Adriano” não é apenas um livro, é uma biblioteca. Yourcenar demorou anos a fio a escrevê-lo e o mais admirável é ter começado aos 20 anos. É certo que destruiu todos os seus manuscritos dessa época, mas não deixa de ser extraordinário que este livro tenha começado a desenhar-se na sua cabeça com esta idade. Tudo o que escreveu entre os 20 e os 25 anos foi criteriosamente rasgado ou apagado, e só uma década mais tarde retomou o trabalho.
Entre 1924 e 1934, dos 20 aos 30 anos, portanto, Marguerite Yourcenar leu e sublinhou muitos outros livros de outros autores, fez longas investigações, passou horas infinitas em bibliotecas e museus, de pé, a contemplar figuras romanas, gregas e egípcias, tudo para conseguir escrever as primeiras quinze páginas do seu livro. Julgou que eram definitivas, mas mais uma vez nada sobreviveu. Apenas uma frase ficou a fazer eco e permaneceu de pé nos escombros deste livro tentado e ainda não conseguido.
Eis a única frase que escapou: “Começo a avistar o perfil da minha morte”. Yourcenar não haveria de começar imediatamente as Memórias por aqui, mas o pensamento de Adriano aparece logo na segunda página do livro que todos conhecemos. Todos os que amamos a sua escrita, quero dizer.
“Como um pintor instalado em frente de um horizonte, e que sem cessar desloca o seu cavalete para a direita, depois para a esquerda, eu encontrara finalmente o ponto de vista do livro”, confessou a autora nas suas notas sobre Memórias de Adriano.
Apesar de tudo era demasiado nova para se atirar a esta escrita, prossegue Yourcenar. “Há livros a que só devemos abalançar-nos depois dos quarenta anos. Antes dessa idade corre-se o risco de desconhecer a existência das grandes fronteiras naturais que separam, de pessoa para pessoa, de século para século, a infinita verdade dos seres (…) foram-me precisos esses anos para aprender a calcular exactamente as distâncias entre o imperador e eu”.
Adriano morreu em 138, em Roma, e, passados dezanove séculos, a sua existência, a sua obra e aqueles que podem ter sido alguns dos seus pensamentos e fundamentos dão estrutura à vida de quem lê e relê apaixonadamente as suas Memórias. Yourcenar romanceou e recriou, traçando à sua maneira o perfil de um dos ‘ cinco bons imperadores’, como Maquiavel classificou os imperadores de Nerva até Marco Aurélio, que não acederam ao trono por nascimento, mas por adopção.
“Tito, Nerva, Trajano, Adriano, Antonino e Marco não precisaram de coortes pretorianas ou de incontáveis legiões para guardá-los, mas eram defendidos por suas próprias vidas direitas, pela boa vontade dos seus súbditos e pela ligação com o senado”, estabeleceu Maquiavel, no seu Discurso sobre a Primeira Década de Tito Lívio.
Voltando ao livro que mais li e reli ao longo da minha vida, em diferentes fases, em longas e curtas viagens, com sublinhados a lápis feitos com intervalos de anos e décadas, com notas sobre notas que também eu apaguei criteriosamente para conter excessos e depurar memórias pessoais, é fascinante perceber como foi demorado o tempo de Yourcenar. Encanta-me tanto a obra, como a sua história.
“Em Dezembro de 1948 recebi da Suíça, onde a deixara em depósito durante a guerra, uma mala cheia de papéis de família e cartas velhas de dez anos. Sentei-me junto do lume para levar até ao fim aquela espécie de horrível inventário depois de uma morte; passei assim, sozinha, vários serões. Desatava maços de cartas; relia, antes de os destruir, aquele montão de correspondência com pessoas já esquecidas e que me haviam esquecido (…) lançava mecânicamente à fogueira aquela troca de pensamentos mortos com Marias, Franciscos, Paulos desaparecidos. Desdobrei quatro ou cinco folhas dactilografadas; o papel tinha amarelecido. Comecei a ler: “Meu caro Marco…” Marco… De que amigo, de que amante, de que parente afastado se tratava? Não me lembrava daquele nome. Foram precisos alguns momentos para que eu me recordasse de que Marco se referia ali a Marco Aurélio e que tinha diante dos meus olhos um fragmento do manuscrito perdido. Desde aquele momento nada mais me interessou senão rescrever aquele livro, custasse o que custasse”.
A vida está cheia de rasgos e rasgões, de instantes decisivos, de momentos de viragem. A imagem de uma Yourcenar solitária, debruçada sobre o seu passado, decidida a queimar na fogueira as suas memórias pessoais, depois de ter atravessado o tempo de duas grandes guerras e, finalmente, já com 45 anos, a idade a partir da qual se sentia com balanço para escrever sobre um homem clarividente e sábio do mundo antigo, é uma imagem forte e nostálgica. Saber que foi nessa hora nocturna desse remoto mês de Dezembro que realmente tudo começou é exaltante. Pelo menos para mim, que não deixo de me espantar com a sua fabulosa arquitectura mental, nem me canso de ler a sua prodigiosa escrita.
Estamos em Agosto, o mês em que teoricamente temos mais tempo para ler, a altura em que nos damos ao trabalho de comprar ou seleccionar os livros que queremos levar para férias, na ilusão de que os vamos conseguir ler todos. Tenho muito próximo quem leve consigo tantas caixas de vinhos como caixas de livros, e mal chega ao destino descarrega primeiro os livros e arruma-os nas prateleiras como se fosse morar naquele lugar para sempre.
Este ano só levo um livro nunca lido. Não sei porquê, mas aconteceu-me parar e juntar vários de sempre. “Memórias de Adriano”, que acabou de viajar comigo de Veneza até às Ilhas Gregas, mas já está outra vez na mala. “Um Estranho em Goa”, do Agualusa e “A Vida de São Francisco Xavier”, porque em breve estarei nesta latitude, mais dois ou três que preciso mesmo de ler e têm a ver com a universidade, para preparar o semestre, agora com turmas extra só de alunos estrangeiros, e o mais recente de Murakami. “Ouve a Canção do Vento”, acabado de traduzir e publicar, é o único livro novo que levo comigo desta vez. Gostava de levar muitos mais, assumo, mas seria inútil pois não os conseguiria ler.
Levo a Yourcenar porque encontro sempre nas suas linhas alguma novidade narrativa, consoante os tempos que atravessamos, se são mais pacíficos ou mais conturbados. Levo-a comigo como quem leva um consolador, uma espécie de cobertor ou manta que envolve e protege do vento ao entardecer, ou para as noites em que nos deitamos na pedra ainda quente mas arrefecem enquanto apontamos as constelações. Uso a sua escrita quase como aqueles sapatos velhos e já feitos ao pé, que sou incapaz de largar ou pôr de lado.
Marguerite Yourcenar disse sobre Adriano: “se este homem não tivesse mantido a paz no mundo e renovado a economia do império, as suas felicidades e os seus infortúnios pessoais interessar-me-iam menos”. De certa forma leio os desabafos de Yourcenar e os supostos pensamentos de Adriano, o Imperador, na sua longa carta a Marco Aurélio, escrita quando avistava já o perfil da sua morte e cada hora mais distante do seu ‘esplendor do meio-dia’, com o propósito de descobrir nas linhas de uma e nas obras de outro maneiras de reler o mundo à minha volta. Yourcenar a Adriano ajudam-me a pôr a vida em perspectiva.
Apesar dos dias de calor e das noites de estrelas; das férias e das conversas à beira-mar; das viagens e dos amigos, é humanamente impossível permanecermos ‘maravilhosamente desprovidos de qualquer inquietação’. Os acontecimentos diários sucedem-se e impedem-nos de ficar alheios. E, também por isso, dou comigo a memorizar frases que gostaria que ficassem minhas. Como aquela em que Adriano reconhece que ‘o mais opaco dos homens tem os seus clarões’ ou, ainda, a que resume o seu espanto perante o facto de o pão que os homens comiam nas casernas, nos tempos de guerra, se poder transformar em coragem. Gosto da certeza de que, em nós, a massa e o fermento também servem para alimentar a coragem.