As recentes declarações de Macron e Lula da Silva sobre a China e a Rússia foram a maior novidade na política internacional desde a invasão da Ucrânia. Não porque as posições de ambos sobre o conflito sejam as mesmas, como tentou defender o Partido Socialista, mas porque ambas parecem mostrar que a guerra na Ucrânia já não é a prioridade das discussões geopolíticas internacionais.
Quando Macron, no regresso de uma viagem à China, confidenciou a um conjunto de jornalistas que a União Europeia precisava de conservar a sua autonomia em relação aos Estados Unidos e deixou dúvidas sobre um eventual envolvimento europeu na defesa de Taiwan, os interesses europeus na guerra da Ucrânia, inteiramente dependentes da continuação do apoio americano, foram deixados para segundo plano.
Porventura, porque o conflito parece ter estagnado no terreno há vários meses, sem que qualquer dos lados consiga garantir ganhos relevantes e duradouros, a guerra deixou de ser vista como um combate estratégico ou de longo prazo, tendo sido substituída pelo tema da bipolarização da ordem internacional e o alinhamento com os blocos americano ou chinês e com uma eventual (não provada nem fundamentada, recorde-se) invasão de Taiwan a servir como analogia direta para a invasão da Ucrânia.
A essa luz, as declarações de Macron parecem evidenciar a rejeição europeia de compromisso com qualquer um dos potenciais blocos, na expectativa de que um mundo bipolar possa aproximar-se de um mundo multipolar, conservando um lugar para a Europa entre as demais potências regionais. É uma posição catastrofista, que assume o declínio europeu como inevitável (destinada a aproximar a posição relativa da UE à da Coreia do Sul e não à da China ou dos EUA) e se contenta em gerir o declínio, mas com méritos a curto prazo.
Desde logo, porque reabre a questão difícil do relacionamento entre a União Europeia e a China, que se prolonga desde 2020 com alterações frequentes e drásticas, mas sem uma resposta evidente. Os termos em que a União Europeia poderá conviver com a China – país em relação ao qual não tem, economicamente, qualquer da autonomia que Macron reclama à América – são pouco claros, combinando uma profunda dependência económica com modelos políticos antagónicos, incompatíveis e envolvidos num conflito latente. Ao mesmo tempo, porque contribui para refrear o aumento de tensões na relação entre a América e a China que, dos balões à retórica, se tem encaminhado para um caminho de irreversibilidade perigoso e contrário aos interesses europeus.
Também Lula da Silva se imagina a combater para refrear os ímpetos americanos, europeus e ocidentais, amalgamados num pacote anti-imperialista, anticolonial e anticapitalista. Com Bolsonaro, e quando a guerra parecia o único tema da geopolítica, o Brasil estava abertamente com a Rússia. Com Lula, está pela “paz”, para não assumir que está pela China. Essa diferença é ideológica e vem da desconfiança pessoal e comum a muitos países em desenvolvimento em relação à América, mas também vem da noção de um mundo mais confuso como sendo aquele que serve melhor os interesses brasileiros.
Em geral, no Brasil como em quase todos os países que compõem o chamado “sul global”, as expectativas europeias de alinhamento quanto à guerra na Ucrânia foram manifestamente exageradas e pouco trabalhadas. Se ainda é possível solidariedade quanto à situação ucraniana e condenações quanto à invasão propriamente dita, nunca foi possível garantir um apoio idêntico para a aplicação de sanções à Rússia, com o que isso implicaria de prejuízo direto para os países aderentes.
Nem por isso a posição brasileira deixa de ser peculiar. A neutralidade é comum entre países comparáveis e tem sido aproveitada para extrair ganhos relevantes. É o caso da Turquia ou de Israel. Lula, por outro lado, colocou o Brasil firmemente do lado da China, aderindo à retórica e repetindo as ideias fundamentais da posição chinesa, ao mesmo tempo que recebe o ministro Lavrov e rejeita contactos diretos com o governo ucraniano. Ao hostilizar a União Europeia, atribuindo-lhe culpas por um conflito que não desejava nem a beneficia, Lula pode conseguir eventuais ganhos de simpatia com a China, mas torna mais difíceis ganhos concretos nas relações UE-Brasil, como o acordo comercial entre a União e o Mercosul, ou aspirações antigas de um Brasil integrado na ordem vigente, como um lugar permanente no Conselho de Segurança da ONU.
Um mundo em blocos parece agora inevitável. Toda a confusão que se tem gerado em torno dos alinhamentos é dispensável, mas mostra que o mundo se está a mover em resposta a expectativas mais do que a eventos. Uma mudança por si só fundamental.