Na semana passada, começaram as negociações ao nível do Conselho Europeu para a aprovação do Fundo de Recuperação. Portugal espera obter milhares de milhões do fundo proposto pela Comissão Europeia para responder às consequências da pandemia Covid-19. As estimativas apontam para 15 mil milhões a fundo perdido e 10 mil milhões em empréstimos. A estas verbas somar-se-á um montante semelhante, proveniente do Quadro Financeiro Plurianual 2021-2027. Em suma, cerca de 50 mil milhões para os próximos sete anos. Mais uma pipa de massa. Em 2014, Durão Barroso, então presidente da CE, usou estas palavras ao referir-se aos fundos atribuídos a Portugal para o período 2014-2020.
Todos os portugueses reconhecem o contributo dos fundos europeus para o desenvolvimento do país. As infraestruturas e equipamentos nas mais diversas áreas estão assinalados com placas a explicitarem a origem e o montante de financiamento europeu. Essas placas estão espalhadas por todo o país.
Com o próximo quadro comunitário, serão mais de quatro décadas de transferências de fundos europeus. Realizaram-se progressos assinaláveis em indicadores importantes da qualidade de vida. Aproximámo-nos dos níveis médios da UE na taxa de mortalidade infantil, na esperança de vida à nascença, no abandono escolar, nas infraestruturas. E, no entanto, o caso português também sugere ou confirma outra coisa: nenhum país se desenvolve apenas com transferências.
As transferências da UE, através das contribuições dos países mais ricos, visam ultrapassar o atávico atraso português. Nas primeiras duas décadas do século XXI, o PIB per capita registou um fraco crescimento e divergimos da UE. Tal como em meados da década de 90, um trabalhador português produz hoje cerca de metade do valor de um trabalhador alemão.
Ficamos sempre muito ofendidos quando nos chamam a atenção para a importância do uso responsável dos fundos europeus. Na negociação em curso, esse papel de polícia mau cabe aos chamados países frugais – Áustria, Dinamarca, Holanda e Suécia. Pela minha parte, agradeço essa exigência. Também eu exijo uma utilização responsável dos fundos europeus.
A próxima década é decisiva. A população está a diminuir e a envelhecer. A dívida vai aumentar. Sem crescimento económico robusto, a dívida corre o risco de se tornar insustentável. A pandemia cCovid-19 veio complicar ainda mais as coisas. É inevitável uma forte queda do PIB e um aumento da dívida pública para níveis recorde. Precisamos de um crescimento robusto como de pão para a boca.
Não voltaremos a ter à nossa disposição um pacote tão generoso de fundos. Mas mais importante do que o valor dos fundos é o que vamos fazer com eles.
Penso que os portugueses já perceberam isso. As crises financeiras são uma educação. Nas últimas duas décadas, por experiência feita, os portugueses muito aprenderam sobre a aritmética da dívida e sobre os bancos e as suas imparidades. A linguagem dos milhares de milhões tornou-se-lhes familiar.
Talvez não seja exagero afirmar que a educação económico-financeira dos portugueses começou em 2011, quando o ex-primeiro-ministro José Sócrates negociou um empréstimo com a Troika de 78 mil milhões de euros. Era cerca de metade do PIB. A partir daí, os anúncios aos contribuintes em milhares de milhões de euros sucederam-se. Até hoje.
As Parcerias Público-Privadas custam todos os anos ao Estado mais de mil milhões de euros. A nacionalização do BPN já custou mais de 4,5 mil milhões. A resolução do BES custou 4,5 mil milhões. O Novo Banco custa todos os anos cerca de mil milhões. O Estado, para vender o BANIF, teve de pagar 2,5 mil milhões. O Estado injetou 4 mil milhões na Caixa Geral de Depósitos. O Estado tem autorização da Comissão Europeia para emprestar à TAP até 1,2 mil milhões de euros.
Estes milhares de milhões enriqueceram, e continuam a enriquecer, um pequeno grupo de portugueses, que continua em grande medida na sombra e intocável. Tudo isto à custa do empobrecimento do país.
Habituados àquelas ordens de grandeza, os 15000000000 (15 mil milhões de euros) que poderão vir a fundo perdido já não impressionam tanto os portugueses como noutros tempos.
É verdade que ainda assim é uma pipa de massa. Se bem administrada, pode ser uma boa ajuda para ultrapassar a crise e desenvolver o país.
O sucesso da utilização da nova vaga de fundos depende da nossa capacidade em aproveitar a estratégia de reindustrialização da Europa. Para sermos bem-sucedidos, os fundos devem reforçar a competitividade das redes de fornecedores em clusters estratégicos, inseridos em grandes cadeias globais de valor; qualificar os trabalhadores; promover as relações universidade-indústria; melhorar as infraestruturas que nos aproximem dos principais mercados.
Mas a concorrência dos outros países será grande. As novas indústrias tendem a deslocar-se para junto dos principais polos industriais do centro da Europa.
Além disso, a fragilidade das nossas instituições faz temer que a “pipa de massa” acabe nas mãos de alguns, que já devem estar a desenvolver os mecanismos e o devido enquadramento legal para dela se apropriarem.
Se o grosso destes fundos for capturado por pequenos grupos de interesse, a produtividade dos trabalhadores portugueses continuará a ser cerca de metade da dos alemães. Os países frugais, ou do Norte, ou do Centro da Europa, continuarão a dar-nos lições de moral. E será cada vez mais difícil responder-lhes sem cair no ridículo.