Confesso: é um bocado confrangedor ter passado uma vida toda garantindo ao mundo que a direita é democrática, que não havia nenhuma razão para supor que a direita aprecia mais ditaduras que a esquerda (é lembrar os simpáticos regimes comunistas), que a direita não é racista, que a direita não era mais machista que a esquerda (vide o ódio misógino que ofereceram a Margaret Thatcher), que ser de direita não é equivalente a ser grunho que não gosta de teatro e que, se obrigado a assistir a um concerto na Gulbenkian, adormece e ronca.
Eu garantia tudo isto e muita gente me acompanhava. Infelizmente muita dessa gente, mal se viu com as boçalidades de Trump à frente, resolveu dar razão às acusações que a esquerda, maldosamente e sem seriedade tantas vezes, fazia. Afinal, sim, concordam: ser de direita é delirar de apoio a regimes e líderes musculados e autoritários, de Trump a Putin; é odiar o feminismo acima de tudo, chegando-se ao ridículo de termos uma mulher sem filhos a propor dar cabo da vida profissional das mulheres que têm filhos para as obrigar a irem para casa serem somente parideiras; é ser racista (e ao mesmo tempo cantar loas do colonizador benevolente que se deu tão bem com todas as raças, até nos miscigenámos e tudo – que a consistência argumentativa está sobrevalorizada). Ou, como li, afirmar que os estereótipos sobre raças têm razões estatísticas.
Ser de direita, afiançam-me, é ter raiva de qualquer novidade que mude o estado de coisas para os tradicionais marginalizados do poder e dos bons rendimentos. Nós odiamos mudanças, já aqui escrevi. Na política também pedimos os sais de cada vez que vimos novidades.
Para esta direita, os adjetivos ‘cosmopolita’ e ‘urbano’ são insultos. Apreciar as artes e eventos culturais é para gente amaricada das cidades, que não sabe o que é a vida do país real e duro. Finge-se que na grande Lisboa não vive 30% do país, e no grande Porto 20%, pelo que se há país real é este. (Também aconselharia a visitarem o olhar distanciado de Rentes de Carvalho sobre o Portugal rural, cheio de brutalidade e maldade, mas aconselhar leituras não é algo que funcione.) Em boa verdade, as ideias maoistas de por as elites urbanas e intelectuais a aprenderem com o campesinato não são muito distantes destas narrativas da ‘direita’.
Segundo o credo desta direita, não há racismo. Mas, em calhando haver, o racismo é todo dos escurinhos, que nós por cá somos perfeitos e era o que faltava termos de olhar para dentro e questionarmo-nos do que seja. E, claro, nunca mudar.
É uma direita que se preocupa muito com os atropelos aos direitos das mulheres nas comunidades ciganas (que também não me peçam para ignorar), mas baba de delícia quando Trump faz alterações que limitam o âmbito da violência doméstica ou restringe o acesso das americanas aos contracetivos.
Uma direita que sofre e se apoquenta com as violações na Suécia feitas por islâmicos, contudo as apoiam quando os agressores vêm da ‘cristandade’. No Vox, aqui ao lado, chegaram mesmo a criticar a última sentença dos violadores do La Manada, como um ataque à heterossexualidade e às relações livres entre homens e mulheres. (Não, não é gozo nem fake news.) Lembremos como tantos à direita por cá estavam entusiasmados com um possível bom resultado do Vox nas legislativas espanholas, que seria a vindicação da argumentação do povo comum esmagado pelas elites.
Por mim vou continuar a defender mais ou menos o que sempre defendi. A economia de mercado e o capitalismo. O comércio livre, que tanto tem feito por tirar pessoas da pobreza. A iniciativa privada o mais possível liberta da burocracia inútil. Sendo certo que, tal como não acredito em homens providenciais e omniscientes na política, também não os vislumbro nas empresas. O mercado é bom, mas serve (muito legitimamente) interesses individuais e ninguém tem informação perfeita nem conhece o futuro, ao contrário do que se considera nos modelos económicos. Donde, sim, há que ter freios, há que limitar o poder (e o tamanho) das grandes empresas multinacionais, há que garantir que não se atropelam direitos e liberdades de terceiros, que as empresas pagam as externalidades negativas que produzem, concretamente ambientais. (E não, isto não é nenhuma inovação socialista, como grita a direita histérica. Em qualquer universidade de economia o exemplo tipo de uma externalidade negativa é o de uma empresa que polui.)
Prefiro um estado que garanta os bens públicos à população (e deve garanti-los) que um estado prestador de serviços ou, pior, um estado empresário. Abusos de poder pelo estado sobre os cidadãos e empresas causam-me urticária aguda.
Porém não estarei presente na defesa de regras sociais – tantas vezes mais férreas que as disposições legais – que imponham regressos a passados de má memória, para as mulheres ou para outros grupos. Ainda: não estou virada para ignorar problemas como a falta de mobilidade social ou as desigualdades, nem as suas consequências corrosivas.
Também não contem comigo para excluir dos locais de poder – político, económico ou cultural – franjas da população, em prol da já demonstradamente errada teoria da falta de mérito de quem não acede, ou da crença numa mítica meritocracia que não existe. Por muitas razões, mas em último reduto pelo muito prosaico e económico ‘no taxation without representation’.
Em todo o caso, a discussão mais importante não é sobre as quotas para minorias, é sobre a natureza da direita. Sobre as quotas também não precisamos de nos preocupar. Se forem implementadas (espero que sim), não ficaremos pior que com a geração que nas universidades ou na política foi produzida quando maioritariamente só homens e geralmente de famílias endinheiradas tiravam cursos universitários e acediam aos lugares públicos. Ou, como nos dizem, quando se respeitava o mérito.