Eutanásia e Morte Medicamente Assistida

As definições de eutanásia e de morte medicamente assistida foram amplamente discutidas em Portugal. Foram quase três décadas, mais precisamente vinte e oito anos de debate, quatro versões anteriores do texto agora em vigor, duas das quais alvo de declarações de inconstitucionalidade pelo Tribunal Constitucional e outras duas que mereceram veto político.

Decorridas mais de duas décadas sobre a discussão quanto à despenalização da eutanásia, o debate público e a controvérsia jurídico-social já não se alicerça só na legalização da morte medicamente assistida per se, mas sim, agora, no regime jurídico da morte medicamente assistida, em particular naquele que se encontra em vigor e resulta da Lei n.º 22/2023, de 25 de Maio que vamos analisar.

No fundo, o debate centra-se em saber se esta lei é verdadeiramente uma solução para os doentes que se encontram num estado de sofrimento de grande intensidade e sem quaisquer expectativas de melhoria ou de recuperação ou se, na prática, se trata, a final, de um poço de burocracia, uma verdadeira via crucis, demasiado penosa e extremamente complexa e demorada.

A Lei n.º 22/2023, de 25 de Maio

Foquemo-nos, agora, no regime jurídico da morte medicamente assistida introduzido pelo recente diploma legal finalmente aprovado e publicado. A Lei n.º 22/2023 pretende regular a morte medicamente assistida, indicando expressamente as situações em que a mesma não é punível. Este diploma veio, assim, alterar o Código Penal no que concerne aos ilícitos criminais relacionados com o auxílio, incitamento ou propaganda à morte de terceiro.

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A presente Lei divide-se em seis capítulos. Analisemo-los.

O Capítulo I trata das disposições gerais. No artigo 2.º deste diploma, encontramos os múltiplos conceitos nucleares do regime da morte medicamente assistida que se revelam de imprescindível compreensão para a análise da lei, dos trâmites procedimentais e seus pressupostos de aplicação. A alínea a) deste artigo 2.º define o conceito de morte medicamente assistida como “a morte que ocorre por decisão da própria pessoa, em exercício do seu direito fundamental à autodeterminação e livre desenvolvimento da personalidade, quando praticada ou ajudada por profissionais de saúde”.

Ora, não podemos deixar de frisar que, bem ou mal, o legislador definiu a morte medicamente assistida de uma qualquer pessoa como um exercício do seu direito fundamental à autodeterminação e livre desenvolvimento da personalidade, previsto no artigo 26º da Constituição da República Portuguesa.

Embora este alicerce do direito à morte medicamente assistida não esteja isento de controvérsia, certo é que o legislador não pretendeu desconectar este direito do seu titular, exacerbando a liberdade de escolha e a importância desta escolha ser efectivamente livre. Conforme reconheceu o Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 5/2023, “estas duas dimensões do direito ao desenvolvimento da personalidade conferem a cada pessoa o poder de tomar decisões cruciais sobre a forma como pretende viver a própria vida e, por inerência, a forma como não a pretende continuar a viver.

É exactamente esta dimensão do direito ao desenvolvimento da liberdade e à autodeterminação pessoal que o legislador não quis deixar esquecida, exigindo, como pressuposto da morte medicamente assistida, o desígnio livre e consciente daquele que exerce este direito.

Nas alíneas b) e c) do artigo 2.º do diploma sob apreço é feita a distinção entre suicídio medicamente assistido e eutanásia, explicitando tratar-se de suicídio medicamente assistido a autoadministração de fármacos letais pelo próprio doente e tratar-se de eutanásia administração dos fármacos letais ao doente, por sua vontade, por um médico ou profissional de saúde. Ambos – suicídio medicamente assistido e eutanásia – se encontram no âmago da noção de morte medicamente assistida.

Ora, no que concerne a esta distinção, importa relembrar que a 19 de Abril de 2023, o Presidente da República devolvia o texto ao Parlamento, pela quarta e última vez, apontando que seria necessário clarificar ou densificar dois pontos: i) o facto de o doente não poder escolher entre o suicídio assistido e a eutanásia, mas apenas poder recorrer à segunda se estiver fisicamente impedido de praticar o primeiro e ii) saber a quem compete atestar que o doente não está em condições de autoadministrar os fármacos letais, assim como definir quem deve supervisionar o suicídio assistido.

Efectivamente, hoje, a Lei n.º 22/2023 de 25 de Maio prevê, no seu artigo 3.º/5, que “a morte medicamente assistida só pode ocorrer por eutanásia quando o suicídio medicamente assistido for impossível por incapacidade do doente”, clarificando a subsidiariedade da primeira relativamente ao segundo.

Na análise do artigo 2.º desta lei não podemos, ainda, descurar os conceitos de “doença grave e incurável”, “de lesão definitiva de gravidade extrema” e de “sofrimento de grande intensidade”.

A lei considera doença grave e incurável “a doença que ameaça a vida, em fase avançada e progressiva, incurável e irreversível, que origina sofrimento de grande intensidade” e por lesão definitiva de gravidade extrema “a lesão grave, definitiva e amplamente incapacitante que coloca a pessoa em situação de dependência de terceiro ou de apoio tecnológico para a realização das atividades elementares da vida diária, existindo certeza ou probabilidade muito elevada de que tais limitações venham a persistir sem possibilidade de cura ou de melhoria significativa”. O legislador procurou, tanto quanto possível, concretizar conceitos amplamente indeterminados frisando, indubitavelmente, a necessidade de definitividade e irreversibilidade da doença ou lesão.

Sem prejuízo das dúvidas que possam surgir na interpretação destes primeiros dois conceitos, constata-se que o terceiro conceito sob análise é aquele que mais dúvidas e problemas levanta.

Nas primeiras versões da lei, a definição do conceito de sofrimento de grande intensidade mencionava o sofrimento físico, o sofrimento psicológico e o sofrimento espiritual. Já na altura, esta definição não era clara ou inequívoca, tendo o Tribunal Constitucional exigido que se esclarecesse se o sofrimento mencionado seria cumulativo ou alternativo.

Em face destas dúvidas e por razões que não resultam expressas da lei ou do debate público que antecedeu a aprovação da presente lei, o legislador optou por omitir totalmente a referência a sofrimento físico, psicológico e espiritual e por manter inalterados os termos da restante definição. Fê-lo, suprimindo aquela menção, ao invés de esclarecer as dúvidas que a mesma levantava.

Neste novo texto, agora em vigor, sofrimento de grande intensidade é definido como “o sofrimento decorrente de doença grave e incurável ou de lesão definitiva de gravidade extrema, com grande intensidade, persistente, continuado ou permanente e considerado intolerável pela própria pessoa”.

Ora, é nosso entendimento que a eliminação da referência ao sofrimento físico, psicológico e espiritual não solucionou um problema ou esclareceu os mais cépticos. Pelo contrário a mera omissão do esclarecimento da natureza, qualidade ou específica intensidade do sofrimento apenas veio criar uma lacuna na lei e dificuldades acrescidas ao intérprete ou ao aplicador do direito.

Afinal, é possível recorrer à morte medicamente assistida se o sofrimento e a lesão tiverem natureza exclusivamente psicológica? Ou será necessário que esse sofrimento psicológico derive de lesão física? Ou, ainda, será que o sofrimento psicológico derivado de lesão física exige que haja ainda sofrimento físico? Tudo questões por responder!

Efectivamente, na Europa, alguns Estados já se debateram com a resposta ou a falta dela a situações em que o sofrimento é meramente psicológico. Vejamos o célebre, mas por demais infeliz, caso de Noa Pothoven. Tratava-se de uma adolescente holandesa vítima de abuso sexual e violações por múltiplos homens no decorrer da sua infância, que sofria de stress pós-traumático, depressão e anorexia como resultado destes eventos traumáticos. Em face do seu atroz e duradouro sofrimento psicológico e emocional, tendo presente que na Holanda a morte medicamente assistida pode ser solicitada e aplicada em alguns casos de sofrimento psicológico insuportável, Noa solicitou e requereu a morte medicamente assistida. Naquele concreto caso, embora se constatasse o sofrimento qualificado que permitia recorrer a este expediente, as autoridades holandesas não permitiram o recurso à morte medicamente assistida por Noa desde logo em razão da sua idade. Ora, Noa acabou por falecer, mas em Portugal a dúvida persiste. Se aquela jovem vivesse em Portugal, fosse maior de idade e se qualificasse o seu sofrimento como sofrimento de grande intensidade, persistente, continuado, irreversível e intolerável e se reportasse aos abusos sexuais como causa de lesão psicológica grave, definitiva e amplamente incapacitante, poderia recorrer à morte medicamente assistida em Portugal?

Não encontramos resposta no nosso ordenamento. Por um lado, a lei não especifica que a lesão tenha de ser física. Por outro lado, a lei não clarifica se a doença pode ser mental. Por fim, a lei não esclarece se o sofrimento pode ser tão-só psicológico.

Não se percebe, tendo em conta a relevância jusfundamental da morte medicamente assistida e os alertas dirigidos pelo Tribunal Constitucional, porque optou o legislador infranconstitucional por deixar a questão em aberto ao invés de a solucionar inequivocamente, expressando aquela que era a sua vontade e legitimidade democrática. Resta agora aos tribunais e aos intérpretes e aplicadores do direito fazer o que cabe ao legislador, definir inequivocamente quando é legal a morte medicamente assistida.

E nem se diga, que o leque de situações possivelmente equacionadas no âmbito da morte medicamente assistida se cingia meramente ao sofrimento físico, às lesões físicas e às doenças físicas, pois que foi o próprio legislador a incluir primariamente o sofrimento psicológico nas definições de presente lei. Afinal, se os avanços na medicina e as estatísticas europeias demonstraram algo, é que a Saúde Mental é um problema que não pode ser ignorado. Mas que deve ser enfrentado. E também alvo de previsão legal.

Avançando, agora, na análise do artigo 3.º desta lei, anteriormente referido, constata-se que este prescreve a despenalização da morte medicamente assistida.

No artigo 3.º/1 da Lei n.º 22/2023, de 25 de Maio, prevê-se a morte medicamente assistida não punível, entendendo-se por morte medicamente assistida aquela que ocorre por decisão consciente e deliberada da própria pessoa, cuja vontade tem de ser actual, reiterada, séria, livre e esclarecida.

Daqui decorre que a expressão da vontade pode ser revogada a todo o tempo, sendo necessário aferir mais uma vez da vontade do doente no momento da aplicação dos medicamentos letais. Decorre igualmente que a vontade do doente não pode estar viciada por coacção moral e que a mesma deverá ser declarada apenas após a prestação de todos os esclarecimentos necessários.

Já no artigo 3.º/2 deste diploma é definido que apenas se consideram legítimos os pedidos de morte medicamente assistida por cidadãos nacionais ou legalmente residentes em território nacional. Assim, apenas têm legitimidade para requerer a morte medicamente assistida aqueles em que se constate um de dois vínculos – i) nacionalidade portuguesa, ii) residência/domicílio em Portugal.

O Capítulo II diz respeito ao procedimento a seguir em caso de vontade de recurso à morte medicamente assistida, iniciando-se pelo artigo 4.º, cuja epígrafe remete para a “abertura do procedimento clínico”. De acordo com este preceito o procedimento clínico deve ser feito sempre por escrito, garantindo-se por esta via uma maior segurança e solenidade e uma acrescida reflexão do pedido, devendo ser dirigido a um médico orientador escolhido pelo requerente.

O médico orientador irá funcionar como interlocutor principal durante todo o procedimento de recurso à morte medicamente assistida, cabendo-lhe realizar o parecer destinado a apreciar a validade e procedência do pedido de morte medicamente assistida daquele concreto doente, devendo para tal aceder ao historial clínico daquele e assumi-lo como elemento essencial na determinação da verificação dos pressupostos da morte medicamente assistida

O artigo 5.º deste diploma densifica o procedimento para a emissão do parecer supra mencionado e esclarece que aquele profissional de saúde deverá emiti-lo no prazo de vinte dias a contar da abertura do procedimentos. Especifica-se, igualmente, que em caso de parecer não favorável, o procedimento será cancelado e dado como encerrado, sem prejuízo de o doente poder sempre reiniciar o procedimento, nos termos do artigo 4º desta lei.

No caso de o parecer do médico orientador ser favorável, este procede à marcação de consulta com um médico especialista na doença que leva o doente à escolha da opção da morte medicamente assistida, de acordo com o artigo 6.º.

O médico especialista tem como função confirmar ou não o diagnóstico da situação clínica que o doente apresenta e com a qual fundamenta o pedido de morte medicamente assistida. Conforme sucede com o parecer desfavorável do médico orientador, caso o médico especialista não confirme o diagnóstico clínico fundamentador da morte medicamente assistida, o procedimento chega ao seu fim, podendo o doente reiniciar o procedimento nos termos do artigo 4.º, apresentando novo pedido por escrito.

Nas situações em que o parecer do médico especialista é favorável, cabe ao médico orientador informar o doente desse parecer favorável, o qual tem o dever de confirmar se a vontade do doente se mantém, garantindo que a mesma é actual.

O artigo 7.º da Lei n.º 22/2023, de 25 de Maio, trata da confirmação da procedência do pedido de morte medicamente assistida por um médico especialista em psiquiatria. Este parecer é obrigatório nas situações em que exista dúvidas sobre a capacidade do doente para solicitar, de forma esclarecida e livre, a morte medicamente assistida. Cabe ao médico orientador e/ou ao médico especialista apreciarem dessa mesma capacidade.

É, também, obrigatório o parecer do médico psiquiatra nas situações em que haja dúvida fundada sobre se o doente sofre de uma perturbação psíquica ou de uma condição médica que afete a sua tomada de decisões. Caberá, mais uma vez, ao médico orientador e/ou ao médico especialista apreciarem dessa mesma possibilidade.

Verificando o médico psiquiatra alguma das patologias médicas acima descritas, o procedimento é cancelado, nos termos e para os efeitos do artigo 7.º/2 da lei sob análise, devendo o doente ser informado dessa avaliação e da respectiva fundamentação, podendo sempre o doente reiniciar os procedimentos conforme descrito no artigo 4.º já mencionado.

Caso todos os pareceres médicos sejam favoráveis, o médico orientador deverá remeter cópia do Registo Clínico Especial para a Comissão de Verificação e Avaliação dos Procedimentos Clínicos da Morte Medicamente Assistida, solicitando parecer sobre o cumprimento do procedimento. Se a Comissão aferir do cumprimento do procedimento, comunicará ao médico orientador, cabendo a este informar o doente e confirmar mais uma vez se essa é ainda a sua vontade.

Aqui chegados e antes de se passar à análise do procedimento de concretização do pedido de morte medicamente assistida, importa reforçar o disposto nos artigos 11.º e 12.º da Lei n.º 22/2023, de 25 de Maio, dos quais resulta que o pedido pode ser revogado a qualquer momento, implicando assim o cancelamento do procedimento clínico, concretizando-se assim mais uma vez o direito ao doente dispor sobre si próprio e reafirmando-se a necessidade de actualidade do consentimento.

No que toca à concretização do pedido, resulta do artigo 9.º do diploma sob apreciação, que cabe ao doente a escolha do dia, da hora e do local onde se concretizará a morte medicamente assistida. Este direito não é, porém, ilimitado, na medida em que o artigo 13.º deste lei elenca taxativamente os locais autorizados, cabendo ao doente a escolha de entre aqueles em que esta é permitida.

Na hipótese de o doente ficar inconsciente antes da data marcada para a realização do procedimento, este é interrompido e não se realiza, excepto se o doente recuperar a consciência e mantiver a decisão, conforme resulta do artigo 9.º/5 da presente lei.

Este preceito pretende acautelar as situações em que o doente quando era suposto concretizar a morte medicamente assistida se encontra inconsciente, garantindo que não se procede àquele sem o doente se encontrar perfeitamente consciente do procedimento que terá lugar ou sem que o doente confirme em momento lúcido após momento inconsciente que pretende ainda assim prosseguir de imediato com o procedimento. 

Em face do teor destas normas, não podemos deixar de nos questionar sobre a correcção desta lei no que concerne às situações em que o consentimento é prestado múltiplas vezes e imediatamente antes da concretização do procedimento e em que o procedimento não se vem a efectuar em razão de no concreto momento em que seria concretizado o doente não se encontrar consciente ou mentalmente capaz de proferir novo e reiterado consentimento.

Efectivamente, após se sujeitar a tantos momentos de confirmação da sua reiterada e actual vontade, fará sentido deixar de se aplicar este procedimento por avanço da doença, que pode inclusivamente ser a doença motivadora da vontade de recorrer à morte medicamente assistida?

Estaremos a privilegiar a vontade do paciente ao não realizar o procedimento por este, naquele momento em que o procedimento iria ser concretizado, ter sucumbido à doença e não ser capaz de conscientemente reiterar a sua vontade?

Ou, pelo contrário, estaremos a denegar ao doente que, por múltiplas vezes se expressou e se manifestou no sentido da concretização da morte medicamente assistida, o direito à concretização da sua escolha?

A resposta não é inequívoca e compreendemos que o legislador procurou acautelar situações em que a morte medicamente assistida tem lugar sem real vontade do titular do direito à vida. Afinal, parece que as consequências decorrentes de uma morte não desejada são mais gravosas do que aquelas que decorrem de uma vida indesejada. Porém, não conseguimos deixar de ponderar se será assim verdadeiramente para o doente que pretende pôr cobro à sua vida.

Na eventualidade de o doente, no final do procedimento, ter obtido todos os pareceres favoráveis necessários, ainda se encontrar na plenitude das suas capacidades psicológicas e pretender ainda  recorrer à morte medicamente assistida, o artigo 10.º dispõe que devem estar presentes o médico orientador e outro profissional de saúde quando da administração dos fármacos letais, seja este pelo próprio doente, na situação de suicídio assistido, ou pelo médico orientador, na situação de eutanásia, assim como podem estar as pessoas indicadas pelo doente, desde que o médico orientador assim o aprove por considerar que estão reunidas as condições clínicas e de conforto adequadas.

Concretizado o procedimento de morte medicamente assistida, deverá ser verificada a morte e certificado o óbito nos termos da legislação em vigor, conforme resulta do artigo 15.º desta lei, devendo as cópias ser arquivadas no Registo Clínico Especial, o qual é elaborado pelo médico orientador nos termos do artigo 16.º deste diploma. O médico orientador deve, ainda, no prazo de 15 dias úteis após a morte medicamente assistida do doente, elaborar um relatório final que deve ser anexado ao Registo Clínico Especial.

O Capítulo III da Lei n.º 22/2023, de 25 de Maio centra-se nos direitos e deveres dos profissionais de saúde.

O artigo 18.º explicita que os profissionais de saúde inscritos na Ordem dos Médicos ou na Ordem dos Enfermeiros podem praticar ou ajudar no procedimento, excluindo-se deste leque, porque questões óbvias de conflito de interesses, todos aqueles que possam adquirir vantagem ou benefício em razão da morte do doente. O artigo 19.º enuncia os deveres dos profissionais de saúde, salientando dentro deste o dever de informar os doentes que requereram a morte medicamente assistida da evolução do processo, dialogar com os restantes profissionais de saúde envolvidos no procedimento e assegurar que todas as condições se encontram reunidas para a continuação daquele. Ademais, estão ainda obrigados ao dever de sigilo e de confidencialidade de informação.

Tendo presente a controvérsia subjacente à morte medicamente assistida e as perspectivas médicas sobre o dever de preservar a vida, a Lei n.º 22/2023, de 25 de Maio, esclarece que nenhum profissional de saúde pode ser obrigado a praticar ou a ajudar no procedimento, nem ser sujeito a responsabilidade disciplinar por tal recusa. Vem-se, por este meio, consagrar-se o exercício do direito à objecção de consciência por razões éticas ou deontológicas.

O Capítulo IV trata da fiscalização e avaliação do procedimento da morte medicamente assistida, prevendo a criação da Comissão de Verificação e Avaliação dos Procedimentos Clínicos de Morte Medicamente Assistida, cabendo a este órgão a validação do procedimento, conforme resulta dos artigos 24.º e 8.º/1 da Lei n.º 22/2023, de 25 de Maio.

Prevê-se que a comissão seja composta por cinco membros, sendo estes (i) um jurista designado pelo Conselho Superior da Magistratura, (ii) um jurista designado pelo Conselho Superior do Ministério Público, (iii) um médico designado pela Ordem dos Médicos, (iv) um enfermeiro designado pela Ordem dos Enfermeiros e (v) um especialista em bioética designado pela Conselho Nacional da Ética para as Ciências da Vida.

Uma vez mais, a presente lei apresenta dificuldades de aplicação. Efectivamente, tendo presente a relevância desta comissão no âmago do procedimento de morte medicamente assistida, sendo responsável por confirmar o cumprimento de todos os trâmites legais de cada processo de morte medicamente assistida e por dar a autorização final para a sua concretização, não se antevê a sua concretização, uma vez que o bastonário da Ordem dos Médicos já assegurou que não irá nomear nenhum profissional para representar os médicos, por não concordar com o teor da presente lei.

Já no Capítulo V encontramos a consagração da alteração legislativa ao Código Penal, incindindo sobre o artigo 134.º (homicídio a pedido da vítima), o artigo 135.º (incitamento ou ajuda ao suicídio) e o artigo 139.º (propaganda do suicídio).

O Capítulo VI diz respeito às disposições finais e transitórias.

É de saudar a preocupação do legislador em regular os efeitos da morte medicamente assistida no âmbito dos contratos de seguro de vida. De facto, é comum que as apólices dos seguros de vida excluam do âmbito de protecção do seguro situações em que a morte é provocada intencionalmente pelo tomador do seguro.

Porém, a nosso ver bem, tendo em conta as especificidades da morte medicamente assistida e os seus apertados requisitos, previu-se no artigo 29.º da Lei n.º 22/2023, de 25 de Maio que, para efeitos do contrato de seguro de vida, a morte medicamente assistida não pode ser, por si só, um factor de exclusão.

Desta forma, o legislador acautelou a liberdade do doente, o qual podia querer recorrer à morte medicamente assistida, não o fazendo para que os familiares pudessem beneficiar do seguro contratado.

Ficarão por resolver, porventura com a convocação da cláusula do abuso de direito, situações concretas em que o seguro não preexistia à situação.

A Eutanásia na Europa

Já tivemos oportunidade de analisar detalhadamente a Lei n.º 22/2023, de 25 de Maio, e de sinalizar alguns dos problemas práticos e de aplicabilidade que a mesma convoca.

No entanto, cremos que a sua análise isolada não basta para compreender as virtudes e possíveis impraticabilidades da regulamentação da morte medicamente assistida em Portugal, exigindo-se, pois, a sua análise numa perspectiva comparatística no plano europeu, a qual se centrará, em seguida, em uma ou outra situação nos ordenamentos jurídicos que mais dúvida suscitou.

Primeiramente, não podemos deixar de referir a “Loi relative à l’euthanasie” que entrou em vigor a 28 de Maio de 2002, na Bélgica, e que, em virtude das alterações legislativas que ocorreram em 2014, possibilitaram o recurso à eutanásia por menores de idade. Ora, diferentemente do que sucede na Bélgica, a lei portuguesa restringe o recurso a estes procedimentos a maiores de idade, conforme resulta do artigo 3.º/1 da Lei n.º 22/2023, de 25 de Maio.

Em seguida, salientamos uma diferença no caso da lei espanhola. Aqui, o procedimento de morte medicamente assistida foi regulado recentemente, através da Lei Orgânica n.º 3/2021, de 24 de Março, prevendo-se a legitimidade para requerer a morte medicamente assistida de todos aqueles que tenham nacionalidade espanhola, residência legal em Espanha ou um certificado que comprove uma permanência em território espanhol superior a 12 meses. Assim, em Espanha, alarga-se o âmbito de aplicação da morte medicamente assistida, permitindo-se que pessoas que comprovem a sua residência em território nacional por período igual a um ano, ainda que aí não residam legalmente.

Nos Países Baixos, a eutanásia e o suicídio assistido são regulados na lei “Termination of Life Request and Assisted Suicide (Review Procedures) Act”. De entre as especialidades desta lei cumpre-nos referir o facto de o médico poder concretizar a eutanásia no caso dos doentes terminais que já tenham o procedimento de eutanásia agendado, mas que ficaram em estado de inconsciência e revelem ainda sinais de grande sofrimento, embora para tal tenha que consultar a Royal Dutch Medical Association, a pedido da Board of Procurators General of the Public Prosecution Office e do Healthcare Inspectorate. Salientamos, ainda, o facto de aí se poder fazer uma espécie de “testamento vital”, mas que incida sobre a opção de recurso à morte medicamente assistida, porquanto, através de directivas antecipadas, as pessoas têm a possibilidade de manifestar por escrito a sua pretensão de, perante eventuais situações de doença, recorrerem à eutanásia ou ao suicídio assistido, dando o seu consentimento previamente e sendo o mesmo válido a posteriori. Ademais, consideramos igualmente importante diferenciar a lei portuguesa desta no que concerne aos menores, uma vez que nos Países Baixos, os menores podem requerer a eutanásia a partir dos 12 anos, com o consentimento dos pais ou dos representantes legais, e a partir dos 16 anos, independentemente do seu consentimento, embora os pais devam ser neste caso envolvidos no processo.

Por fim, entendemos ainda pertinente confrontar a lei portuguesa com o paradigma legislativo suíço. Este país vem servindo de refúgio para todos aqueles que pretendem recorrer à morte medicamente assistida e que a esta não puderam recorrer no seu país de origem, quer porque o seu pedido foi recusado em face dos estritos critérios para o recurso a este expediente, quer porque o seu país de origem não admite a eutanásia, inclusivamente conferindo-lhe a natureza de crime. Até à publicação da lei que nos ocupou, registou-se um êxodo de cidadãos portugueses para a Suíça para aí recorrerem ao suicídio medicamente assistido. De facto, embora não haja legislação específica despenalizando a eutanásia, a interpretação feita dos preceitos em vigor tem sido no sentido de descriminalizar o suicídio assistido sempre que o doente se encontre em fase terminal em virtude da doença ou da lesão que o afete. Salientamos, no entanto, que a inexistência de legislação específica a este propósito implica que o procedimento tenha lugar na esfera privada, não sendo controlado pelo Estado, nem havendo uma responsabilização estadual pelos doentes que a esta recorram, nem tão-pouco um controlo estadual da capacidade plena do doente para dar o seu consentimento.

Considerações Finais

Da análise da Lei n.º 22/2023, de 25 de Maio, podemos concluir que a sua aplicabilidade depende da necessidade de nomeação de membros para a Comissão de Verificação e Avaliação, na medida em que esta desempenha um papel fundamental e imprescindível para a conclusão do procedimento e concretização da morte medicamente assistida e esse vai ser um desafio difícil.

Também se tornou evidente que a Lei n.º 22/2023, de 25 de Maio, apresenta algumas lacunas graves de previsão e de densificação e que padecerão de ser supridas pelo intérprete e aplicador do direito, deixando nas mãos daqueles uma tarefa que deveria ser primariamente balizada e concretizada pelo legislador.

Estas lacunas de previsão e de densificação, nomeadamente no plano dos requisitos de fundo da morte medicamente assistida, podem vir a permitir o recurso à morte medicamente assistida em situações que o legislador repudiaria veementemente, mas cujo repúdio não fez constar adequadamente da lei. Salientamos, neste âmbito, as dúvidas quanto aos conceitos de “doença grave e incurável”, “lesão definitiva de gravidade extrema” e “sofrimento de grande intensidade”, ficando por precisar se as mesmas podem assumir natureza psicológica.

Ainda assim, após confronto com alguns ordenamentos jurídicos europeus, podemos concluir que a Lei n.º 22/2023, de 25 de Maio, que apenas entrará em vigor trinta dias após a sua respectiva regulamentação, a qual deverá ocorrer nos noventa dias subsequentes à sua publicação, é cautelosa quando comparada com as restantes leis em vigor noutros países e visa assegurar a plena capacidade e a perfeição e actualidade do consentimento prestado, asseverando que este é reiterado ao longo do processo e é prestado de forma consciente e livre.