A intervenção do primeiro-ministro António Costa, em plena campanha eleitoral autárquica, em Matosinhos, é todo um tratado do que um governante não deveria dizer, num país desenvolvido, que tem o mercado como pilar do seu crescimento e que quer ter empresas cotadas e resistentes à transição energética. Mais grave ainda, reflete a interpretação que António Costa faz do exercício do poder, em linha com a famosa frase de Jorge Coelho: “quem se mete com o PS leva”. Agora não é apenas com o PS, é com o Governo e com as câmaras geridas pelo PS. E quem não fizer o que o Governo quer “leva uma lição exemplar”, para que os outros também se submetam e nem se atrevam a desobedecer.

Vamos ao que disse o primeiro ministro.  Primeiro começou por dar lições de gestão com a seguinte frase: “Era difícil imaginar tanto disparate, tanta asneira, tanta insensibilidade, tanta irresponsabilidade, tanta falta de solidariedade como aquela que a Galp deu provas aqui em Matosinhos”. E avançou para as três lições.

Acusou a Galp de insensibilidade social por anunciar o encerramento da refinaria de Matosinhos com impacto em 1600 pessoas – nas suas palavras – a 20 de Dezembro, cinco dias antes do Natal.

Nós sabemos que os governantes traçam, a régua e esquadro, os momentos certos para dar as más notícias aos seus eleitores. São em geral muito úteis os horários de futebol, os fins-de-semana ou os períodos de férias ou feriados com pontes – mesmo os do Natal e Ano Novo -,  tempos escolhidos para publicar e anunciar medidas impopulares, na expectativa de que ninguém repare ou tenha condições para se organizar no combate. Esta táctica, de mascarar a realidade, foi, e tem sido, usada e abusada na gestão das contas públicas, com vários truques de ilusionismo. O problema é que uma empresa, ainda por cima cotada em bolsa, tem obrigações de transparência e não pode seguir essas tácticas que, digamos, também não têm sido muito saudáveis para a democracia, contribuindo para a infantilização dos cidadãos.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Em segundo lugar, o primeiro-ministro acusou a Galp de não ter planeado e preparado o encerramento, designadamente pela requalificação das pessoas. Tal contradiz o que se tem sabido sobre o processo de encerramento da parte do negócio da refinaria. Desde 20 de Dezembro, quando anunciou a decisão aos accionistas na Comissão de Mercados de Valores Mobiliários, que a Galp tem desenvolvido um conjunto de acções com os trabalhadores e em reuniões com os ministros do Ambiente, da Economia e do Trabalho.

Por último, António Costa acusou a empresa de irresponsabilidade por não ter dialogado nem com o Governo nem com a Câmara sobre o que pretende fazer com terrenos que deixa contaminados. Isto, dito assim, parece que a Galp desapareceu e deixou para ali terrenos contaminados. E, mais uma vez, sabe-se que a empresa tem estado a trabalhar com o Governo e a autarquia. Veja-se, por exemplo, o resumo que o próprio PS faz da audição parlamentar da presidente da Câmara de Matosinhos e do administrador da Galp José Carlos Silva. Aliás, aqui referem-se 1500 trabalhadores, 400 diretamente da refinaria, quando o primeiro-ministro fala em 1600.

Mas o primeiro-ministro não ficou por aqui. A seguir partiu para as ameaças. Apelou à sua candidata e actual presidente que utilize “todos os mecanismos legais que as leis do ordenamento do território colocam nas mãos do município para garantir que naqueles terrenos só se fará o que o município de Matosinhos autorizar e só autorizará o que for para bem do progresso desta região”. Porque, repare-se, diz o primeiro-ministro de Portugal, “quem se porta assim tem de levar uma lição. Tem de levar uma lição para que esta lição seja exemplar para todas as outras empresas que vão ter de enfrentar processos semelhantes, neste processo de transição energética”.

Nós retiramos daqui várias lições. Bastante aterradoras, diga-se. Primeiro, que a lei não é igual para todos. Só assim se entende que o primeiro-ministro tenha de apelar para que se faça cumprir a lei, na defesa do progresso, porque a empresa tem de “levar uma lição”. Ou seja, o primeiro-ministro quer castigar a Galp com o cumprimento da lei. Ao contrário, podemos entender que se a Galp fizesse aquilo que o primeiro-ministro queria, a presidente da Câmara de Matosinhos tinha via verde – quem sabe com um dos famosos PIN de outros tempos – de dar à Galp o que a Galp quisesse.

Quem não faz o que o Governo entende que se deve fazer, ficámos agora explicitamente a saber através do discurso Galp, deve “levar uma lição” para que lhe “sirva de exemplo”, a quem o fez e a todos os outros. Para aprenderem a fazer aquilo que o Governo quer, subentende-se. Para não se atreverem a violar os ditames do poder.

Tudo isto parece impossível de ter acontecido em Portugal, país da União Europeia e da área do euro, defensor dos princípios da liberdade e da democracia. Com o que disse em Matosinhos, o primeiro-ministro valida a tese dos que consideram estarmos a viver tempos em que, quem não está com o poder do PS, tem a vida bastante dificultada na sua actividade empresarial ou profissional.

Além dos mais importantes princípios de liberdade, que violou com o que disse, o primeiro-ministro transmitiu uma mensagem de insegurança para quem quer investir em Portugal. A qualquer momento o empresário ou investidor pode ouvir o Governo a dar lições de gestão e a pedir castigos exemplares. Ignorando e desprezando as entidades reguladoras e de supervisão e os seus ministros que têm acompanhado o processo. E, pasme-se, o primeiro-ministro até conseguiu desmentir-se a si próprio.

Em Maio deste ano, em Matosinhos, na conferência do Grupo dos Socialistas e Democratas no Parlamento Europeu, António Costa elogiou o encerramento da refinaria como “um enorme ganho para a redução de emissões”, colocando também o problema dos efeitos no mercado de trabalho, mas no patamar que também agora o deveria ter feito. A transição energética, todos os governos o sabem, levanta problemas no mercado de trabalho que, com toda a certeza, não se resolvem com estas gritarias populistas.

Temo-nos habituado a não saber o que realmente pensa António Costa. Há quinze dias elogiou a Universidade Católica por ter conseguido abrir o primeiro curso privado de medicina, contra tudo e contra todos. Esta semana critica a Galp por esta a fazer a transição digital – quando se alguma critica houvesse a fazer à empresa, até pelo próprio Estado que também é acionista, é em relação ao seu atraso nesta transformação. Um dia temos um primeiro-ministro amigo da iniciativa privada e da independência e liberdade; no dia seguinte temos um primeiro-ministro que quer as empresas a reunir com o Governo por cada decisão que tomem com efeitos no emprego.

Só porque conhecemos António Costa há décadas, como político, é que consideramos que sabemos o que pensa e que não pensa assim, que não nos quer a todos a agradar ao Governo ou levarmos uma lição. Por isso não levamos em geral muito a sério estas tiradas populistas de ataque às empresas — já aconteceu em tempos com a EDP, que agora tem sido poupada às fúrias do primeiro-ministro, embora sem se saber bem porquê, já que nenhum dos problemas que o irritavam ficaram resolvidos. Há sempre uma razão. Neste caso da Galp é de acreditar que a razão pode estar no segmento de mercado que quer conquistar, os trabalhadores que desgraçadamente perderam o emprego, e dificilmente encontrarão outro, com o encerramento da refinaria. Exploração da desgraça alheia.

O problema deste foco no mercado eleitoral, que faz de António Costa também o herói dos funcionários públicos e dos pensionistas, é que não nos garante o crescimento económico. E se o primeiro-ministro estiver a ensinar aos seus camaradas de partido que é preciso dar lições exemplares a quem não faz o que o PS quer, nem democracia temos.

Vamos acreditar que o primeiro-ministro, político experiente e, por isso, disse o que de facto quis dizer, usou a Galp para ganhar votos e criar uma manobra de diversão que colocou em segundo plano os seus problemas internos de gestão.  Pelo menos falou-se menos do facto de Marta Temido ter usado o carro do Governo para fazer campanha. O custo destas manobras de diversão e de conquista eleitoral podem é ser muito elevados. Mas isso nunca parece preocupar António Costa. E quem discordar arrisca-se a levar uma lição exemplar e fica sem autorização para ter uns favores das câmaras.