O líder do PSD Luís Montenegro resolveu criticar aquele que acabou por ser um dos mais importantes contributos da governação de António Costa: criar um consenso na sociedade portuguesa sobre a necessidade de ter as contas do Estado equilibradas e, mais do que isso, obter excedentes orçamentais para resolver a pesada mochila que carregamos do passado, e que nos expõe nas tempestades financeiras, a dívida pública. Cometeu um erro. Porque o problema não é o que António Costa chama simplificadamente “contas certas”. O problema é a forma como temos chegado a essa disciplina financeira.

Quando olhamos para a contas públicas desde 2015, aquilo que verificamos no sector público administrativo é que se sacrificou de forma muito significativa os serviços públicos. Isso é visível nomeadamente através da falta de investimento público e por via de decretos de execução orçamental que puseram boa parte da gestão operacional nas mãos do gabinete das Finanças. E não vale a pena dizer que estamos a apelar ao investimento em betão. Estamos a falar em dar aos serviços públicos condições de trabalho, equipamentos e espaços de trabalho, focando-os no cidadão. As empresas do Estado foram ainda mais apertadas pelo Ministério das Finanças que usou o seu veto de gaveta para impedir a entrada em vigor dos seus planos de atividade e orçamentos.

A função objetivo do Governo, na política orçamental, durante os últimos anos, foi usar os escassos recursos financeiros que tinha ao seu dispor para garantir que se mantinha no poder, satisfazendo os grupos eleitorais dos funcionários públicos e dos pensionistas. Esse objetivo teve sempre como restrição o objetivo das ditas “contas certas”, sabendo bem o PS que não podia correr o risco de ser apontado, de novo, como responsável pela indisciplina financeira.

Do ponto de vista político-partidário, de conquista e manutenção do poder, a estratégia seguida foi brilhante: o PS conseguiu uma maioria absoluta e quase destruiu o PCP e o BE. Mas do ponto de vista dos interesses do país a médio e longo prazo – que chegou agora – foi um desastre, agravado com a pandemia. O resultado é que o PS, o partido que no discurso mais defende os serviços públicos e especialmente os pilares da Saúde e Educação, pode ficar para a história como aquele que contribuiu, se não para a destruição, para a significativa degradação do Estado Social.

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A estratégia política de satisfazer segmentos eleitorais, que garantiam o poder, parece agora, que existe maioria absoluta e até margem orçamental, ter-se transformado em incapacidade, exigindo mais recursos, agora por via dos impostos. Os recursos financeiros muito significativos absorvidos pela Saúde é o exemplo mais dramático da falta de capacidade de fazer mais com, pelo menos, o mesmo dinheiro. António Costa não gosta da expressão “reformas estruturais”, mas digamos que era preciso reorganizar o Estado para, efetivamente, se garantir serviços públicos de qualidade com os mesmos ou menos recursos financeiros e, assim, reduzir impostos.

Mal ou bem é o que se está a tentar fazer na Saúde, embora a entrevista do CEO do SNS, Fernando Araújo, ao Público não nos deixe muito confortáveis, nomeadamente quando parece que uma das vias para solucionar o problema passa por reduzir a procura, limitando o acesso às urgências. Enfrentamos o sério risco de degradar ainda mais o acesso à saúde com essa solução, agravando as desigualdades.

O problema de não se estar a conseguir tornar o Estado mais eficiente é que não se consegue reduzir efetivamente a carga fiscal com que ficámos desde 2012, o ano do enorme aumento de impostos de Vítor Gaspar. E a ineficiência do Estado, conjugada com a estratégia político-partidária de anúncio de redução de impostos, corre o risco de se traduzir num sistema fiscal mais regressivo, ou seja, no aumento da desigualdade. Depois de a degradação dos serviços públicos já ter feito o mesmo.

A proposta de Orçamento do Estado para 2024 é, desse ponto de vista, ilustrativa. O IRS e, no seu conjunto, o peso da tributação direta no PIB reduz-se. Mas a tributação indirecta aumenta (8,9%) muito acima do crescimento nominal da economia, previsto para o próximo ano. E, em termos globais, a carga fiscal medida pelo rácio entre a receita total e o PIB sobe. Ou seja, o sistema ficou mais regressivo, mais injusto.

O caso do IUC, com um aumento muito significativo para quem tem carros anteriores a 2007, exemplifica de forma dramática essa regressividade. Claro que uma das políticas mais eficazes para reduzir as emissões danosas para o ambiente e acelerar a transição energética passa por alterar os preços relativos, tornando mais caro o que polui mais. Mas essas medidas que respeitam o princípio do poluidor pagador não podem ser adopatadas de forma cega, sendo essa, aliás, a razão pela qual existem medidas e programas, no quadro da União Europeia, para assegurarem a designada “transição justa”. Desse ponto de vista a proposta da Zero é muito mais equitativa do que a do Governo e até mais amiga do ambiente. Além disso é óbvio que não faz sentido reduzir portagens e depois dizer que se aumenta o IUC por causa do ambiente.

Sim as “contas certas” são um valor que devemos preservar e o PSD deve até estar satisfeito por ver essa bandeira, que parecia ser só sua, estar a ser adotada também pelo outro grande partido da governação. Ninguém quer ficar de novo nas mãos dos credores e ainda bem que todos perceberam que é preciso ter disciplina financeira. Mas há vários caminhos para essas contas certas. Até há pouco tempo, a estratégia foi reduzir a despesa de investimento, degradando os serviços públicos. Como não é possível prosseguir esse caminho, já que parece que finalmente há cada vez mais pessoas a perceberem como é que se conseguiram até agora essas contas certas, o Governo parece ter reforçado a sua estratégia de aumentar os impostos que ninguém sente diretamente, tornando o sistema fiscal mais injusto.

E podia ser diferente. É possível e tem de ser possível conseguir contas certas sem agravar a desigualdade, como tem acontecido até agora, primeiro com a degradação dos serviços públicos e agora tornando os impostos mais pesados para quem tem menos. Tem é de se ser capaz de mudar o funcionamento do Estado.