1 As recentes buscas à sede do PSD e à casa de Rui Rio, no quadro de uma investigação do Ministério Público acerca da eventual prática de crimes de peculato e de abuso de poder, pela circunstância de as subvenções destinadas aos grupos parlamentares poderem estar a ser utilizadas fora do âmbito da atividade parlamentar, para fins exclusivamente partidários, provocou um grande alarido e um intenso debate de que a comunicação social foi eco.

2Dirigentes políticos (antigos e atuais), comentadores, jornalistas e muitas outras pessoas zurziram forte e feio no Ministério Público pela forma como ocorreram as buscas em causa. Subscrevo boa parte dessas críticas, até porque alguns dos vícios apontados são recorrentes, a saber:

  1. presença da comunicação social nos lugares buscados, mesmo antes das diligências se iniciarem, o que contribui para um espetáculo mediático lamentável, que humilha e apouca quem é objeto dessas diligências;
  2. desproporcionalidade no recurso a uma vasta equipa de agentes de autoridade (fala-se em mais de cem inspetores da Polícia Judiciária!), para proceder a buscas na sede de um partido político e na casa de um antigo dirigente partidário, que a natureza da investigação aparentemente não justifica;
  3. eventual abuso da apreensão de telemóveis e computadores, de que os seus titulares se verão privados durante semanas, meses ou anos (como é comum acontecer), cuja necessidade dificilmente se vislumbra;
  4. estranheza pelo facto de a investigação se circunscrever a um partido político, com referência ao período em que dele foi líder Rui Rio, quando se diz à boca cheia que as práticas sob investigação seriam comuns noutros partidos políticos (pelo menos, nos maiores);
  5. ausência de qualquer explicação pública (cabal), por parte do Ministério Público (Procuradoria-Geral da República ou outro órgão), acerca do que fundamenta a investigação e as buscas, nos termos em que estas ocorreram.

3Porém, e a par deste juízo público generalizado – que partilho –, políticos, comentadores, jornalistas e outros, das mais variadas orientações, têm propalado a ideia de que seria absurdo proceder a uma investigação acerca da eventual irregularidade da utilização na atividade partidária das subvenções para apoio à assessoria dos deputados e dos grupos parlamentares, uma vez que estes seriam órgãos dos partidos, razão pela qual esses fundos poderiam ser alocados discricionariamente à atividade política e partidária. Rui Rio justificou-se ainda com a circunstância de que o grupo parlamentar e o partido «são uma só entidade, com um único número fiscal», o que, francamente, não vejo que seja argumento que precise de ser rebatido, tão débil é a sua utilidade para este debate.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

4Impressiona-me a grande adesão que esta ideia tem suscitado, porque creio que está errada e, a subsistir, perverte aquilo que presidiu à instituição, pela Lei de Organização e Funcionamento dos Serviços da Assembleia da República, de apoios à contratação do pessoal dos gabinetes dos grupos parlamentares, e, pela Lei de Financiamento dos Partidos Políticos, de uma especial subvenção para encargos de assessoria aos deputados (a par de uma outra para o financiamento da atividade partidária e ainda de uma quarta para fazer face aos encargos resultantes das campanhas eleitorais).

Como é evidente, os membros dos gabinetes dos grupos parlamentares e os assessores dos deputados exercem as suas funções no quadro da atividade política que cabe aos partidos prosseguir, o que pressupõe uma articulação com a atividade partidária e a possibilidade do exercício das suas tarefas fora das instalações parlamentares. É também natural que existam “zonas cinzentas” entre aquilo que é o complemento da assessoria parlamentar e a atividade partidária fora desse contexto. Porém, à parte isso, os partidos têm obrigação de afetar os apoios e subvenções ora em causa à atividade parlamentar, cuja qualidade a lei pretende assegurar e é por isso que o erário público a financia.

Fico assim espantado com a facilidade com que se diz que ninguém cumpre, nem tem de cumprir, esse critério de afetação (ainda que, obviamente, se saiba que isso não pode ser feito a “régua e esquadro”). O que se pensaria, num raciocínio por absurdo (mas útil para demonstrar quão errada é esta conceção da natureza destes apoios), se os partidos utilizassem as subvenções parlamentares para assegurar o pagamento dos serviços de limpeza e de segurança das suas sedes partidárias?

5Respeito Rui Rio, que tenho por um homem íntegro, mas não quero ficar calado quando defende – com o apoio generalizado de muita gente ilustre – uma tese que a lei não comporta. E que, de resto, nem acho que devesse comportar, porque a afetação destes meios à atividade parlamentar é imprescindível para garantir o bom nível dessa prestação.

Também acho perigosa a ideia de que alguém tem de “pôr na ordem” o Ministério Público. Claro que as más práticas devem ser criticadas, corrigidas e combatidas. Tal como os vícios sistémicos que permanecem devem ser denunciados. Mas também sei que a autonomia do Ministério Público é um bem inestimável ao serviço do Estado de Direito.

6Abomino as generalizações que tudo confundem, misturando no mesmo saco o que é bom e o que não presta, os que cumprem e os que não cumprem, o que serve a democracia e aquilo que a perverte. Não há democracia sem partidos políticos, nem Estado de Direito sem Ministério Público.