Perdi a conta ao número de artigos que li e comentários que ouvi sobre as eleições espanholas que remetem para lições a aprender pelos partidos portugueses. Umas são sobre as estratégias de alianças dos partidos (nomeadamente à direita). Outras são sobre a negociação de apoios ou de coligações pós-eleitorais para suportar um governo. Sem excepção, todas essas lições me parecem desadequadas, redundantes ou inúteis: não há entendimento ou estratégia para a realidade política portuguesa que as eleições espanholas possam ter alterado. Ora, o facto de várias dessas “lições” estarem a ser promovidas por protagonistas com responsabilidades partidárias em Portugal (à esquerda e à direita), mais do que qualquer argúcia analítica, evidencia desnorte e falta de noção.

Começo pelo princípio: não é possível comparar a política espanhola com a política portuguesa. Para além de dinâmicas próprias nascidas do regionalismo espanhol, basta referir que, em Espanha, existem partidos regionais, assim como partidos separatistas/independentistas no País Basco e na Catalunha, com agendas políticas que desafiam a ordem constitucional, a integralidade do território e a legitimidade política do governo nacional. No caso do EH Bildu (País Basco), trata-se de um partido herdeiro do terrorismo da ETA, cujos ataques mataram (de acordo com associações de vítimas) cerca de 950 pessoas. O facto de estes partidos terem voz em negociações para uma maioria parlamentar introduz radicalismo e uma particular complexidade na política espanhola, algo sem paralelo na realidade política portuguesa, impedindo qualquer equiparação entre Espanha e Portugal.

Mesmo quem em Portugal feche os olhos a esta incompatibilidade e tenha muita vontade de fazer extrapolações indirectas, não encontrará qualquer pista útil. À esquerda, os espanhóis vislumbram duas tendências que Portugal conhece bem: por um lado, observa-se a disponibilidade dos socialistas (em minoria) negociarem apoios à sua esquerda para sobreviverem no governo; por outro lado, observa-se a penalização eleitoral dos partidos da esquerda radical mais associados ao governo do PSOE. Ou seja, com as devidas distâncias, são tendências semelhantes às que Portugal vive desde 2015, com a “geringonça” e posterior maioria absoluta do PS, obtida por via da penalização eleitoral de BE e PCP. Não há novidades ou lições a retirar daqui.

À direita, o caso é ainda mais flagrante. O PP espanhol constata (definitivamente) que já não basta vencer eleições para governar — a direita só terá poder quando o seu bloco de partidos tiver mais deputados do que o bloco de partidos de esquerda. Mais ainda: a direita espanhola verificou que o VOX serve essencialmente de obstáculo à composição de maiorias. Por um lado, porque provoca uma fragmentação dos votos que prejudica a eleição de deputados: em 2023, PP e VOX somaram juntos mais votos mas menos deputados (11,1 milhões de votos, 169 deputados) do que o PP em 2011 (10,8 milhões de votos, 186 deputados), quando este obteve maioria absoluta sozinho. Por outro lado, porque o VOX gera anticorpos que mobilizam o eleitorado de esquerda e afastam algum eleitorado do centro, que recusa votar no PP por receios de entendimentos com a direita populista. Novamente, com as devidas distâncias, nenhuma destas tendências é novidade para os partidos portugueses, desde a “geringonça” (2015) e desde que, em 2022, o PS obteve uma maioria absoluta a cavalgar no receio popular de ter o Chega envolvido numa solução de governo PSD. Não há novidades ou lições a retirar daqui.

Mais importante do que tudo isto: não era preciso realizarem-se eleições espanholas para em Portugal se tornar claro que o Chega é infrequentável e incompatível com qualquer cenário de governação à direita. É infrequentável porque, politicamente, representa um ataque ao regime democrático e aos valores fundacionais das repúblicas liberais. É infrequentável porque, no plano técnico, exibe um amadorismo confrangedor, um grupo parlamentar medíocre e uma embaraçante falta de quadros políticos — só existe André Ventura. E é infrequentável porque, no plano estratégico, afasta eleitores e enfraquece a direita: num país sociologicamente mais à esquerda e sob a memória traumática de um regime autoritário associado à direita, não há qualquer tolerância para os radicalismos de direita, mesmo se essa tolerância existe para os de esquerda (que muitas pessoas aceitam por associarem à resistência ao Estado Novo). Tudo isto é claro há vários anos e só tem sido confirmado pelo tempo.

As eleições espanholas não alteram nada na política portuguesa, nem trazem lições. Preocupante é que, no PSD, isto não fosse evidente e se olhasse para Espanha para decidir o que fazer com o Chega. Pode ser que, agora, a ausência de lições sirva de lição aos sociais-democratas e o PSD consiga excluir categoricamente qualquer cenário negocial com o Chega.

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