Desconfio sempre dos debates que resumem os desafios de políticas públicas à oposição entre sectores público e privado. Porque partem de uma premissa errada — a de que a natureza institucional funciona como determinante de qualidade. E porque entrincheiram a conversa num combate de clichés ideológicos, defendendo um dos lados e discriminando o lado oposto. Contudo, que essa seja uma visão primária da política não a torna rara, em doses semelhantes à esquerda (que resolve tudo com nacionalizações ou investimento exclusivo no público) e à direita (que pretende solucionar cada problema com privatizações). E, infelizmente para nós, o Governo tem dado inúmeras provas de ser um adepto desse enviesamento, ocupando a trincheira da esquerda. O episódio da semana foi a exclusão, por parte do Conselho de Ministros, das escolas privadas do plano de testagem rápida e massiva para permitir um regresso ao ensino presencial: uma decisão incompreensível, inaceitável e que foi forçosamente revertida — mas que, entretanto, expõe desorientação e desperta um velho preconceito contra o ensino privado.
Incompreensível porque, neste caso, está em causa o cumprimento de critérios impostos pelo Estado para proteger a saúde pública na reabertura das escolas. Esta não é uma questão de serviço ou opção educativa das famílias. É uma questão de tratamento desigual no desconfinamento, aplicado pelo Estado a alunos do secundário (84 mil) e professores (11 mil) do sector particular e cooperativo, com eventuais consequências para a saúde pública ou para o direito à educação dos alunos — isto, na circunstância de haver escolas privadas com menor capacidade de organizar ou suportar os custos dessa testagem regular da comunidade educativa. Sendo esta uma medida prevista no plano de desconfinamento, a menos que o Governo acredite que a Covid-19 apenas se espalha nas escolas públicas, a discriminação é contraproducente e prejudicial para o interesse público, que consiste em proteger a saúde de todos.
A decisão é também inaceitável porque, seja qual for o ângulo com que se olhe para ela, está ferida de irregularidades e, dizem-nos vários constitucionalistas, é provavelmente inconstitucional. Isto não deve surpreender ninguém, porque em Janeiro o Governo não se inibiu de outra inconstitucionalidade para travar o funcionamento online de colégios privados. Mas, neste caso concreto, o Governo até havia sido claro na inclusão das escolas privadas, em Janeiro, quando anunciou um plano de testagem nas escolas. O que explica a mudança de posição? Não se percebe, eventualmente dificuldades operacionais e logísticas. Mas, de qualquer modo, sabe-se o essencial: a decisão é insustentável e foi revertida para incluir as escolas privadas na testagem.
A reversão da decisão encerra o assunto? Não sem antes se sublinhar duas conclusões. A primeira é a óbvia desorientação de quem toma estas decisões ziguezagueantes e inconsistentes. Acaba por ser até intrigante imaginar o que leva um Conselho de Ministros, após um ano de pandemia, achar acertado contradizer-se face ao que dissera antes e excluir uma parte dos alunos e dos professores dos apoios para cumprir as regras de desconfinamento — com óbvio prejuízo para a saúde pública.
A segunda conclusão é que, no debate político, não somente não nos livramos dos velhos preconceitos contra o ensino privado como temos um Estado que os promove. Seja na oferta dos manuais escolares somente para os alunos do ensino público. Seja na aquisição de equipamentos (computadores e ligação à internet) no âmbito do programa Escola Digital, que não prevê distribuição de kits para os alunos do ensino privado (e que inicialmente até excluiu os dos contratos de associação, situação posteriormente rectificada). Seja no tom crítico com que o Governo se referiu em Janeiro ao ensino privado — proibindo-o de dar apoio aos alunos e depois dando o dito por não dito. Seja agora no acesso aos apoios para a testagem de professores e alunos. Em vez de uma visão integrada do sistema educativo, as decisões e o discurso do Estado geram afastamento e colocam o ensino privado numa ilha à parte do sistema educativo.
Tudo isto é um absurdo. Repare-se que Portugal é o país da UE onde existe a maior percentagem de alunos do secundário a pagar propinas no ensino privado, mas está muito longe de ser um dos países com mais alunos a frequentar escolas privadas. A diferença explica-se, simplesmente: ao contrário de Portugal, em vários países europeus, os privados são vistos como parte integrante, não só da rede, mas também da oferta pública (através de financiamento do Estado). Eu sei que, para a realidade portuguesa, esta descrição soa a ficção científica — mas talvez isso seja precisamente um bom motivo para se reflectir.
Num contexto de emergência em que se espera do Estado bom-senso e capacidade de resolução, o mínimo exigível é que não se inventem mais problemas. Com decisões insustentáveis, atentatórias para a saúde pública e discriminatórias contra o ensino privado e os seus alunos e professores, não havia como o país sair a ganhar.