O ministro Pedro Nuno Santos pagou 55 milhões de euros para expulsar, aos gritos e insultos, o accionista David Neeleman da TAP, empresa que o Governo diz que está falida. O fundador da Jetblue, uma referência no sector da aviação, pode gabar-se de ter ganho dinheiro em plena crise inédita da aviação, viu-se livre do risco de perder dinheiro e manteve-se como credor privilegiado com uma remuneração de 7,5%. Um negócio que ninguém entende e que, pelo que se conhece, prejudica o interesse do Estado e da empresa. Mas que a ninguém parece interessar esclarecer.

Todo o processo da TAP é um mistério de irracionalidade. Há muitas decisões com que podemos não concordar, mas que encontramos uma razão para elas. Neste caso nem se pode concordar ou discordar, apenas não se percebe. Claro que esta solução é melhor do que a nacionalização à força. Mas a melhor solução teria sido manter David Neelman na estrutura accionista, a ajudar, com o que conhece do sector, com os seus contactos e também com o seu dinheiro, a recuperar a TAP.

Mas preferiu-se insultar David Neeleman, expulsá-lo e pagar-lhe 55 milhões de euros mais 7,5% de juros pelo empréstimo à TAP de 90 milhões de euros até 2026. E ficar o Estado com 72,5% da TAP e um accionista privado que nada percebe do negócio, não tem contactos no sector nem dinheiro ou acesso internacional a ele. Tudo isto numa crise gravíssima em geral e arrasadora no sector da aviação, a acontecer num país que tem um crónico défice de capital, com a perspectiva de ter ainda menos acesso a ele, e que quer atrair investimento estrangeiro.

A juntar ainda a este cenário já de si aterrador, a TAP está em pleno processo de “ajudas de Estado” na Comissão Europeia que, se já era difícil, tornou-se ainda mais complicado com esta operação de nacionalização, criando problemas adicionais com Bruxelas e mais uma frente de batalha, a dos concorrentes “low cost”. A Ryanair já fez saber que considera a nacionalização uma ajuda de Estado ilegal e que vai avançar para os tribunais europeus. E sendo verdade que a toda poderosa direcção-geral da concorrência não discrimina entre público e privado, como diz, podemos desde já contar com um escrutínio adicional.

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Como se tudo isto não bastasse, além da alteração na estrutura accionista, a TAP ficou nesta fase difícil sem presidente da Comissão Executiva. O ministro Pedro Nuno Santos despediu Antonoaldo Neves em directo, na conferência de imprensa em que ao mesmo tempo garantia que o Governo não vai gerir a TAP.

Respondendo aos críticos, que receiam mais uma empresa com lugares para “boys”, o ministro prometeu que a nova gestão vai ser contratada por concurso internacional por uma empresa de “head hunters” que o Governo vai contratar. Boa prática, aplicada na hora errada e a prometer novos problemas.

No quadro da decisão europeia que autorizou o empréstimo até ao limite máximo de 1200 milhões de euros, a TAP terá de apresentar um plano de reestruturação no prazo máximo de seis meses a contar do início de Junho. Não é expectável que a nova gestão, contratada internacionalmente, chegue a tempo de o fazer e, até ao momento, desconhece-se quem vai substituir o presidente executivo. Ou seja, a TAP está, pelo menos, sem presidente da Comissão Executiva numa das fases mais difíceis da sua vida. Quem a vai gerir? E quem vai então fazer esse plano? O Governo, que garantiu que não ia gerir a TAP? Vai o ministro contar com as pessoas que mais percebem do sector ou continuará a tomar decisões com razões que a razão desconhece?

E a nova gestão contratada internacionalmente estará disponível para ganhar o que Antonoaldo Neves ganhava e a não receber prémios que tanto irritaram o ministro, como questiona Ricardo Costa no Expresso? E estará também a nova gestão disponível para gritarias sobre a escolha dos voos que se devem ou não fazer a partir do Porto?

Estamos perante um nunca mais acabar de questões, tudo problemas que foram criados pelo ministro Pedro Nuno Santos para uma TAP já cheia de problemas.

Façamos um pequeno exercício: o que seria agora a TAP se o Governo, seguindo até a sua característica de grande negociador, tivesse mantido a estrutura accionista, se Neeleman tivesse ficado? Primeiro não tínhamos todos os problemas que acabámos de descrever e o Estado tinha mais 55 milhões de euros que tanta falta fazem nesta crise. Sim, é verdade que poderia ter de gastar esse dinheiro e até mais daqui a uns meses. Mas, pelo que se viu no Orçamento suplementar, todos os tostões fazem falta face à crise que enfrentamos.

Além disso, se tivesse havido um acordo, nesta altura já se estaria a fazer o plano de reestruturação. E David Neeleman, em vez de receber 55 milhões de euros, estaria a aceitar converter em capital os empréstimos que fez à TAP, como aliás se mostrou disponível no quadro das negociações com Bruxelas.

É verdade que as necessidades de capitalização poderiam acabar por ser suportadas pelo Estado que, aí sim, reforçaria a sua posição accionista. Mas até lá existia margem para explorar outras soluções que passariam pela participação de Neeleman ou até de outros accionistas. Vivemos sem dúvida tempos de incerteza total, mas a passagem do tempo tanto pode trazer cenários melhores como piores. Com a escolha que se fez fechou-se a porta a um accionista internacional que poderia trazer dinheiro de fora.

Quanto ao plano de reestruturação, num processo de cooperação entre o accionista Estado e a gestão privada, podia-se igualmente tentar mitigar o erro de ter deixado a Comissão Europeia considerar que a TAP era já uma empresa com problemas ou mesmo falida.

Esta é aliás outra interrogação do caso TAP. Como é que o Governo não conseguiu convencer a Comissão Europeia da viabilidade da TAP? Se olharmos para as contas da TAP SA, aquela que vai ser reestruturada, vemos que os seus capitais próprios são positivos, ainda que marginalmente, e que os resultados operacionais são igualmente positivos. A empresa que o Governo tem vindo a referir como tendo capitais negativos é a TAP SGPS. E sim, está “tecnicamente falida”, mas não é economicamente inviável – uma empresa com este perfil tem um problema financeiro, e não económico, e o seu problema é resolvido com uma capitalização. Mais difícil é viabilizar economicamente uma empresa, mas esse trabalho estava em grande parte feito na TAP.

Como é que os negociadores portugueses não conseguiram demonstrar isso à Comissão Europeia? Como é que também não valorizaram devidamente o facto de a TAP se ter conseguido financiar nos mercados financeiros internacionais em finais de 2019 (ver página 21), de ter aumentado a maturidade média da dívida de 2,5 para 4,5 anos e de ter estado perto de ser adquirida pela Lufthansa – não fosse a pandemia e hoje era disto que estaríamos hoje a falar. Registe-se aliás que um dos projectos dos accionistas privados era colocar a empresa em bolsa para a capitalizar, o que acabou por nunca ir para a frente devido aos condicionalismos políticos do Governo.

Todo o processo é incompreensível como se percebe e é sistematicamente marcado pela irritação do ministro Pedro Nuno Santos com a TAP que começa com o caso dos prémios que a gestão decidiu atribuir a um grupo de colaboradores em 2019. É mais ou menos a partir dessa altura que Pedro Nuno Santos se torna crítico da TAP, questionando em crescendo a sua gestão e em claro contraste com o seu antecessor Pedro Marques.

É também Pedro Nuno Santos, já na fase de negociação do apoio do Estado,  que coloca pela primeira vez a hipótese de deixar falir a TAP, foi a 19 de Maio no Parlamento, para mais tarde, na semana passada, dar o dito pelo não dito e criticar os que defendiam esse cenário classificando-os como fanáticos. A irritação é ainda mais indisfarçável com o presidente executivo da TAP, tendo-se chegado ao ponto de o ministro o ter demitido, em directo, na conferência de imprensa em que anuncia renacionalização da TAP.

Como é que chegámos a este ponto? Como e porque é que o ministro Pedro Nuno Santos fez as coisas como fez? Como é que se foi capaz de adicionar problemas a problemas, sem que nem o primeiro-ministro nem o Presidente da República interviessem? Porque é que o primeiro-ministro se ficou por críticas subentendidas à gritaria a que se foi assistindo na praça pública? O que faz correr Pedro Nuno Santos e o que faz António Costa estar parado? As guerras de sucessão e de protagonismo como defende João Marques de Almeida?

A questão não é a TAP ser ou não ser uma empresa estratégica. A TAP é uma empresa com quase 10 mil trabalhadores que enfrenta uma conjuntura dificílima, tal como as suas concorrentes. Um Governo tem o dever de não criar ainda mais problemas a uma empresa em dificuldades. Não foi isso que aconteceu: o Governo cavou um buraco ainda maior na TAP e salvou um dos accionistas privados de referência. Com a cumplicidade do primeiro-ministro, do Presidente da República e de todos os partidos. As vítimas desta gestão irracional do processo da TAP serão mais de dez mil famílias, os contribuintes portugueses e o dinheiro que vai faltar noutras áreas em que o Estado é importante.