A geringonça funciona em velocidade de cruzeiro. À moda das geringonças, bem entendido. Podíamos exemplificar com as atividades do ministro Santos Silva, pessoa reconhecidamente encantadora, que achou que era a época adequada para gastar cerca de cem mil euros num faqueiro de prata e mais de cinquenta mil euros num serviço de porcelana oficial. Afinal os contribuintes existem mesmo para isto: suportar gastos sumptuários do estado, incluindo em alturas de austeridade (para os contribuintes) – como os socialistas costumam dizer nestas ocasiões, não sejamos miserabilistas nem invejosos, o que são cento e cinquenta mil euros?, há a dignidade do estado a manter, e além de tudo o resto o toque da prata portuguesa é bem mais apelativo do que o do aço inoxidável.
Também poderia referir as sua investigação de sonho: a experiência sociológica de assistir a um concerto do Tony Carreira. Possivelmente esta alternativa estava empatada com o estudo dos hábitos de antropofagia de alguma tribo recôndita da Amazónia, mas o amor do ministro à pátria é tanto que escolheu os ignaros que vão aos concertos de Tony Carreira e até ponderou – imagine-se – misturar-se por umas horas com eles.
Mas valores mais altos – critérios de geringonça – se levantaram. O ministro da educação Tiago Brandão Rodrigues causou-me o que à vista exterior se poderia caracterizar como ataques de nervos ao perceber a que irresponsável político está entregue nos próximos anos a escolaridade dos meus filhos (agora nos anos impressionáveis do primeiro ciclo).
Recapitulemos. Acabou-se o exame do quarto ano (com o que eu concordo) e do sexto ano (já começo a não concordar), e à pressa instituíram-se os testes de aferição nos 5º e 8º anos (no 2º ano já existia um teste nacional feito a todos os alunos, que não contava para a nota, pelo que presumo que não haja mudanças tectónicas aqui). Os anos dos testes de aferição – pela decisão tomada a correr só pela vertigem de desfazer – têm todo o ar de ficarem decididos como calhou, só para não coincidirem com os anos dos exames do governo anterior. E, claro, para impossibilitar avaliação de escolas e de professores, que os sindicatos afetos ao PCP têm de ser mimados.
Mas piores que as ações do ministro são as suas palavras – e que prenunciam as pragas do Egito. Deixo-vos algumas. ‘Treinar para os exames é pernicioso e nocivo’. ‘Não há nenhum ímpeto reformista’ (oh, a surpresa). A ‘cultura da nota é nociva’, está assente nessa coisa tenebrosa que é o ‘treino’ e impede uma ‘escola inclusiva e integradora’ para a tornar uma ‘escola seletiva’. E – trombetas, que vem a minha preferida – ‘sabemos que o sucesso escolar é o grande entrave ao progresso das qualificações, à mobilidade social’ (ditas na comissão parlamentar de educação de 13 de janeiro). (Agora o leitor pode tirar uns momentos para ir hiperventilar para a varanda.)
É tudo maravilhoso. Onde já se viu um qualquer aluno necessitar de treino? Quem estuda um instrumento musical não precisa nada, como se sabe, de treino repetitivo. Um professor de matemática na universidade disse-me, um dia, que se aprendia a calcular integrais só depois de se treinar uns quatro mil. Mas as crianças e adolescentes portugueses fazem tudo bem à primeira, nada do maçador treino. Ainda correríamos o risco de alunos com vontade de ter boas notas – deus nos livre e guarde de tal perspetiva catastrófica. As notas são seletivas, não são inclusivas, diferenciam os alunos – o que é um atentado à igualdade amada pela esquerda – vamos lá exterminar os bons alunos para que os maus alunos se sintam menos rejeitados.
E o sucesso escolar, esse grande inimigo da humanidade? Evidentemente visto pelo prisma da geringonça tem muita lógica: a mobilidade social (até o teclado se ressente de tanto sarcasmo) promovida pelo PS e seus acólitos de extrema-esquerda só se obtém ou com o recebimento de prestações sociais ou (casos em que se sobe até aos faqueiros de prata modelo D. João V) fazendo parte de um partido político e participando na exploração dos recursos do estado em proveito próprio. Mobilidade social dos alunos que, vindos de famílias pobres, através do seu trabalho e inteligência na escola conseguem estudar, tirar um curso, fugir à situação familiar de pobreza (e que em boa verdade deviam ser os alunos mais acarinhados nas escolas) – cenários destes devem ser tão evitados como a peste bubónica. Onde já se viu cidadãos e eleitores a perceberem que se podem valer a si próprios e que podem subir na vida pelo seu próprio mérito? Horror.
Durante a Revolução Cultural Chinesa também se baniram os exames para acesso à universidade, atos burgueses que davam imerecidas vantagens aos filhos das famílias letradas. Que assim foram punidos pelo despautério de serem bons alunos: o sucesso escolar era um conceito elástico que dependia mais dos pergaminhos políticos do que das notas escolares. O ministro aprendeu a lição e faz a sua luta de classes.
Eu pergunto: se toda a gente garantir que agirá como se esta curiosidade ministerial chamada Tiago Brandão Rodrigues nunca tivesse existido, se pelo menos fingirmos que TBR é um mito urbano, ou a Área 51, podemos substitui-lo por um ministro da Educação que não considere o sucesso escolar como um mal? Os ditos do infeliz incumbente são mais ou menos como um ministro da Saúde desabafando mágoas por uma baixa taxa de infeções hospitalares. Penhoradamente agradecia.