Portugal é uma economia estagnada e em perda de competitividade europeia, apoia-se numa Justiça lenta e sofre de corrupção endémica. Ao mesmo tempo, as suas instituições democráticas exibem inconstância, fragilidade e a permeabilidade das portas giratórias. Não há planeamento, apenas o desenrascanço das soluções de curto prazo. E, por isso, os dossiers reformistas arrastam-se ao longo de anos (ou décadas), acumulando oportunidades perdidas na modernização e no desenvolvimento social e económico do país. Nem quando suportados por uma maioria absoluta os governos ousam desafiar corporações e clientelas eleitorais. Não se vislumbra, no horizonte, sinais de esperança num futuro diferente.

Este é um retrato de uma democracia bloqueada, onde a pandemia aprofundou desigualdades, onde os ganhos do investimento nas qualificações estão a diminuir, onde as expectativas de ascensão social são frustradas pela degradação da rede pública de educação (e consequente aumento das matrículas no ensino privado) e onde a promessa de um SNS para todos esbarra na realidade de serviços de saúde à beira do colapso. Sim, Portugal é um país extraordinário para se viver, mas com vários “se” cada vez mais improváveis de conjugar — se os custos da habitação o permitirem, se se conseguir pagar um colégio, se se tiver um seguro de saúde.

Um país assim é uma bomba-relógio de frustrações e insatisfações, à espera de rebentar. Os protestos dos professores são o exemplo do momento: bastou uma faísca para uma classe profissional explodir em protestos, não contra uma medida recente, mas em nome de reivindicações ignoradas durante anos. Eis a ponta do icebergue e um sintoma de uma democracia doente — ou seja, incapaz de responder aos anseios dos cidadãos.

Outro sintoma de uma democracia doente é o alheamento das suas elites. Quando a bolha é pequena e estanque, quem se fecha lá dentro fica impossibilitado de compreender os anseios, as expectativas e as dificuldades de vida da classe média — já para não falar dos grupos sociais desfavorecidos. Augusto Santos Silva é nesse aspecto exemplar. O segundo político português da nossa democracia que mais tempo acumulou em governos (só António Costa o supera), que agora é segunda figura do Estado e que (diz-se) será candidato à Presidência da República, faz o seu diagnóstico: o real perigo para a democracia está na “extrema-direita”.

Santos Silva isola a “extrema-direita” da “extrema-esquerda” — tradução: para o PS, só a direita é que é perigosa para a democracia e é falsa a equivalência anti-democrática entre extremos (há que legitimar a geringonça). Santos Silva lamenta o populismo, que faz a “extrema-direita” crescer e que se observa noutros movimentos que “degradam o uso das greves” — tradução: para o PS, todas as formas de combate ao governo são populistas, incluindo greves de esquerda. Santos Silva quer uma linha vermelha contra a direita no seu todo, porque alega que esta é permeável à “extrema-direita” — tradução: para o PS, a democracia só é saudável se o PS governar sempre. Santos Silva critica o “judicialismo” e a “lógica de tentarmos descobrir a roupa suja” — tradução: para o PS, a corrupção não é o problema-chave, mas sim que se faça escrutínio político de episódios sob investigação do Ministério Público. Santos Silva considera que os eleitores tradicionalmente de esquerda que votam no radicalismo da direita são manipulados — tradução: para o PS, a insatisfação e o protesto expressados em voto por esses eleitores explicam-se por falha dos próprios eleitores, que se deixam manipular.

Metemo-nos num beco sem saída. Por um lado, uma democracia bloqueada, que parece uma panela de pressão de expectativas frustradas. Por outro lado, uma elite política que tudo faz para a manter bloqueada — afinal, os anos de estagnação correspondem ao período dourado da afirmação política do PS (governou em 20 dos últimos 27 anos). No meio, a ausência de uma alternativa política a este rumo pantanoso. Eis o triângulo que compõe o maior perigo para a democracia portuguesa. A continuar assim, desconfio que 2023 não acabará bem.

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