A Esquerda conseguiu criar na opinião pública o mito da sua inalienável superioridade intelectual, cultural e moral sobre a Direita. Superioridade de causas e pessoas.

Intelectual e culturalmente, a Direita seria primitiva, ignorante, iletrada e burra, e a Esquerda moderna, culta, sofisticada e inteligente. Moralmente, as pessoas de esquerda seriam generosas, desprendidas, igualitárias, solidárias, abertas ao mundo e à Ciência e dedicadas aos pobres e oprimidos, e as de direita egoístas, corruptas, obscurantistas, xenófobas, fundamentalistas, partidárias do capitalismo selvagem e indiferentes à sorte dos pobres e marginalizados.

Embora muitos cristãos e muitos pensadores e políticos de direita tenham tomado o partido dos oprimidos e procurado defender pela palavra e pela ação a justiça e o equilíbrio sociais, talvez a simplificação ainda se justificasse quando a Esquerda estava longe do poder, nos tempos da primeira industrialização e do Manifesto Comunista.  Não agora.

O que surpreende é que agora, depois de anos de poder, de “socialismo real” e de socialismo liberal, persista a ideia da inerente superioridade moral da Esquerda. Tanto que os escândalos de corrupção pessoal ou mesmo partidária à esquerda, cuja frequência começa a ser alarmante, parecem continuar a funcionar como os desmandos das “experiências comunistas”, ou seja, como acasos, enganos, desvarios pessoais, exepções a uma regra ou a um conjunto de princípios e presunções que permanecem intocáveis e indiscutíveis.

Não vou falar dos casos nacionais, os menos recentes e os que, mais recentemente, desencadearam as desajeitadas demissões e nomeações em cadeia de membros do governo e titulares de órgãos públicos a que temos vindo a assistir. Casos tão obviamente alheados do bem público, tão centrados no conluio partidário e no proveito próprio, que dificilmente poderiam deixar de ser relatados e comentados, mesmo por uma comunicação social tendencialmente tão “moderada” e alinhada como a nossa.

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Falo, antes, de um caso mais geral, europeu, internacional. Um caso que tem um mês, mas que os nossos media de referência e os seus variadíssimos comentadores fizeram por esquecer logo que lhes foi possível, como sempre acontece quando a realidade vem contrariar a rectidão e a generosidade dos representantes das causas progressistas, justas e generosas.

Da justa luta contra a impunidade de um homem de esquerda

Desde o Verão de 2022 que as autoridades policiais belgas, através do   Office Central pour la Repression de la Corruption, estavam na pista de uma trama que envolvia altas personalidades do Parlamento Europeu, bem como dirigentes de ONGS que teriam, mediante vantagens financeiras, ajudado o governo do Catar a melhorar a sua imagem e a polir a sua reputação no capítulo dos direitos humanos, velhos e novos.

Em 9 de Dezembro, António Panzeri, antigo deputado europeu do PD, Partito Democratico italiano, e Presidente da ONG Fight Impunity, foi detido. A Fight Impunity, como o próprio nome indica, tem por missão lutar contra a impunidade de políticos e empresários corruptos, dos que abusam dos direitos humanos e fazem favores a empresas e a governos a troco de “luvas”, logo, de políticos e empresários que, à partida, deveriam ser “de extrema-direita”.

Além deste seu mais recente activismo, Panzeri conta com um impressionante curriculum de homem de esquerda: foi alto responsável sindical em Milão, desempenhou missões de observação humanitária no Brasil e na Jugoslávia e pertenceu aos Democratas da Esquerda e ao Partido Democrático (os partidos do Agiornamento, ou da adaptação à democracia competitiva dos comunistas italianos depois do fim da URSS).  Mais tarde, a partir de 2004 e até 2019, foi deputado europeu, inscrito no Grupo Socialista.

Nos últimos dias, os investigadores solicitaram ao Parlamento Europeu o levantamento da imunidade de mais dois deputados – o belga Marc Tarabella, da ONG No Peace Without Justice, e o italiano Andrea Cozzolino, também do Partido Democrático italiano –, já que a Presidente do Parlamento, a maltesa Roberta Metsola, assegurara que “não haveria impunidade para ninguém”.

A Vice-presidente do Parlamento, a grega Eva Kaili, perdeu a imunidade por voto unânime dos deputados europeus ao ser apanhada com uma avultada quantia em Euros no seu apartamento da capital belga; e Francesco Giorgi, companheiro de Eva e sócio de Panzeri, está também detido. Eva Kaili é uma militante de esquerda, do Pasok, deputada ao Parlamento de Atenas desde 2007 e eurodeputada desde 2014 e apoiou a escolha do Catar para o Campeonato Mundial de Futebol, elogiando o pioneirismo do país no mundo árabe e os seus progressos quanto ao direito do trabalho e aos direitos humanos.

O “dogma laico” da bondade por inerência

Fosse este escândalo passado com partidos ou pessoas de direita, e os jornais, as rádios, os canais de televisão, não mais cessariam de nos alertar em loop para “a ameaça da extrema-direita que alastra na Europa e mina o Parlamento Europeu”.  Mas o que fazer quando os maus da fita são os bons, os campeões dos direitos humanos, das paridades, das inclusividades e das sustentabilidades e os justiceiros dos que prevaricam? O que fazer quando os activistas das ONGS que identificam os impunes para os punirem, quando os castigadores da Hungria e da Polónia por questões de arco-íris, promovem o Catar, de olho no pote de ouro no fim do arco-íris? É simples: condenam-se de passagem os progressistas corruptos e transviados, como se continuam a condenar de passagem Estalines e Maos, instala-se o silêncio e a superioridade moral da Esquerda continua.

Não é assim, felizmente, em toda a parte.  Na Itália, onde há um governo de direita nacional conservadora e popular, o escândalo e “o dogma laico que levou a esquerda a ser logicamente imune a quaisquer desvios morais” tem vindo a ser discutido e debatido. Não é para menos, visto que a rede corruptora é dominantemente italiana e conta com eurodeputados e dirigentes de ONGS oriundos do Partido Comunista e do Partido Socialista. Porém, também em Itália, perante a dureza e realidade dos factos, a maioria dos jornais e dos media de esquerda escolheu ora a omissão ora a condenação dos suspeitos, pondo em dúvida o seu autêntico esquerdismo ou revivendo um passado assente em fórmulas sagradas como a de que o eleitor de direita “vota com a carteira” e segundo os seus interesses e o eleitor de esquerda “vota com o coração” e em prol do bem comum. Talvez a caricatura pudesse até corresponder a alguma realidade quando a Esquerda estava longe e fora do poder. Não agora.

Qualquer pessoa com experiência de vida sabe que a superioridade moral por inerência dos militantes de um partido ou dos promotores de uma causa é uma falácia, porque há boas causas servidas por pessoas más e más causas servidas por pessoas boas. Basta pensar na experiência da Terceira República portuguesa para ver que, em termos de corrupção, de políticos corruptos, de negociatas, as culpas e os delitos, na sua grande maioria impunes, se distribuem por todo o leque partidário.

E quanto a boas causas, é também falaciosa a ideia de que a sua bondade seja eterna e absoluta ou que possa desligar-se de resultados e consequências. Assim, se o pessimismo antropológico da Direita pode gerar um excesso de realismo na gestão dos egoísmos dos homens e das sociedades, ou um excessivo apego ao peso da tradição e da continuidade da natureza humana, o utópico optimismo antropológico da Esquerda, com o seu irrealismo e simplismo, tem resultado num alheamento em relação aos altos “custos redibitórios” das transformações e aos infernos ateados pelas boas intenções, ou na sua ocultação.

O que está em causa é o maniqueísmo dos políticos, académicos, intelectuais, jornalistas e comentadores que, contra todas as evidências, continuam a pretender que a Esquerda tem o monopólio das pessoas boas e do bem comum, varrendo para a Direita todo o sinistro resto.

É esse o nó do problema e é essa a lição que o Catargate ou os últimos episódios do folhetim político doméstico nos ensinam: que uma corrente ideológica ou política invoque uma inerente superioridade moral para isentar de escrutínio as suas prácticas e desqualificar os adversários não pode deixar de ser “um perigo para a Democracia”.