As relações sexuais são pela sua natureza algo livre. Esta liberdade está ligada à vontade dos indivíduos de terem ou não determinada relação sexual. Quando, de alguma forma, essa vontade, que é um exercício de liberdade, é violada, estamos perante crimes sexuais cujo desvalor social é um dos maiores na nossa sociedade, quase equiparado ao desvalor social dos crimes contra a vida. A questão da liberdade nas relações sexuais está espelhada no bem jurídico que se visa proteger nos crimes sexuais que, por um lado, é a liberdade sexual nos crimes contra a liberdade sexual, previstos e punidos nos artigos 163.º a 170.º do Código Penal, onde a liberdade é ofendida pela falta de consentimento da vítima, por outro lado a autodeterminação sexual, nos crimes contra a autodeterminação sexual, previstos e punidos nos artigos 171.º a 176.ºB do Código Penal onde se protege o livre desenvolvimento da personalidade da criança ou jovem do ponto de vista sexual.

Os crimes, quanto à sua natureza, podem ser públicos, semipúblicos ou privados, tendo em conta precisamente o bem jurídico que visam proteger e que, no caso dos crimes sexuais, é a liberdade sexual e a autodeterminação sexual, como expus supra. No caso destes crimes, podem ser públicos ou semipúblicos. A diferença entre crimes públicos e semipúblicos está na questão de que nos crimes semipúblicos para existir procedimento criminal é necessária a queixa da pessoa com legitimidade para exercer esse Direito (por norma o ofendido, o seu representante legal ou sucessor), enquanto que nos crimes públicos, para existir procedimento criminal basta a notícia do crime pelas autoridades judiciárias ou policiais, bem como, a denúncia facultativa de qualquer pessoa. Nos crimes públicos, o processo pode correr mesmo contra a vontade do titular dos interesses ofendidos (que mais à frente demonstrarei a relevância para os crimes sexuais).

Ora, nos crimes sexuais, existe um evidente interesse público na perseguição e punição do autor do crime. Mas deve-se igualmente ter em atenção que uma vítima de crime sexual, no uso pleno da sua capacidade jurídica, só o é (vítima) no caso de não existir liberdade manifestada no consentimento. É a violação dessa liberdade sexual que a Lei visa punir, assim o determina o bem jurídico que a Lei protege.

Deixo aqui alguns exemplos que ilustram melhor esta questão:

  1. Coação Sexual (art. 163.º do Código Penal) – Natureza semipública. Natureza pública se for praticado contra menor.
  2. Violação (art. 164.º do Código Penal) – Natureza semipública. Natureza pública se for praticado contra menor.
  3. Abuso Sexual de pessoa incapaz de resistência (art. 165.º do Código Penal) – Natureza semipública. Natureza pública se for praticado contra menor.
  4. Abuso sexual de pessoa internada (art. 166.º do Código Penal) – Natureza pública.

Como podemos verificar nestes crimes sexuais, a natureza é pública (art. 178.º do Código Penal) devido à fragilidade e incapacidade dos menores ou de pessoa internada, pois estes não têm vontade ou consentimento juridicamente relevantes para estes efeitos. Nos maiores, ao contrário, por se considerar que estes são capazes de tomar decisões sobre a sua vida, a Lei não ousa substituir-se à sua vontade ou consentimento no que diz respeito à sua vida sexual.

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Muitas vezes nestes crimes, a vítima encontra-se fragilizada e é função do Estado proteger e criar todas as condições para que a vítima apresente queixa em total segurança, proteção e liberdade. Assim, a vítima tem seis meses para o fazer.

Acontece que da parte de determinados ativistas políticos, tem vindo à baila a ideia da alteração para natureza pública no crime de violação em adultos capazes. Algo que me surpreende. Ao alterarmos para natureza pública, estamos a equiparar o regime dos menores ou internados aos adultos no pleno uso da sua capacidade e liberdade (sexual). Estamos perante uma ofensa à liberdade sexual destes últimos ao presumir que o Estado através do Ministério Público se pode substituir aos próprios na avaliação que fazem sobre a sua própria vida sexual.

Vejamos, então, por que razão a alteração é absurda:

  • Desde logo é ineficaz do ponto de vista jurídico-social, pois não poderá ser produzida prova de violação contra a vontade da eventual vítima. Como se pode obrigar alguém a fazer perícias médicas contra o seu consentimento? Como se pode obrigar alguém a prestar declarações acusatórias em Tribunal quando a pessoa não o quer fazer? É, de facto, ineficaz e não produz efeitos jurídico-sociais. Produzirá, certamente, efeitos políticos que é isso que os autores destas propostas procuram, mas como dispositivo jurídico é inútil.
  • É um atentado grave à natureza própria destas relações. Não devemos criar um Estado policial que avalie quais as relações consentidas e quais as não consentidas denunciando-as e punindo-as. Isto acaba por contaminar a sedução e naturalidade própria destas relações.
  • É um atentado à intimidade entre duas pessoas. Como é possível um terceiro qualquer ter o desplante, arrogar-se no direito de, ou ter a ousadia para superar o consentimento e liberdade sexual de alguém suprimindo-o totalmente, para avaliar per se se determinada relação sexual se trata ou não de uma violação? Imaginemos o absurdo de alguém ver a sua intimidade exposta ao pedir por favor em Tribunal para não condenarem o namorado, marido ou parceiro porque as relações denunciadas foram consentidas!! Vejamos o absurdo – “Exmo. Sr. Doutor Juiz, é verdade que o vizinho me ouviu a gritar e por essa razão telefonou à polícia, mas eu estava a gritar de prazer e não de aflição!”. É este o Estado policial onde queremos exercer a nossa liberdade sexual? A partir daqui vamos fazer o quê, criar uma declaração de consentimento assinada para cada relação sexual? Não, obrigado.
  • É um atentado à dignidade da pessoa pela sua exposição. Sujeitar determinada pessoa a um processo penal contra a sua vontade, que pela sua intensa exposição da intimidade, que se revisita vezes sem conta durante o processo, não só é indigno como é humilhante.

Na verdade, não se deve mudar o sistema atual que confere natureza pública à violação contra menor ou quando dela resultar suicídio ou morte da vítima e semipública a maiores. O nosso sistema foi até mais longe e admite, e muito bem, que em casos excecionais, mesmo quando a violação é praticada contra maiores, o Ministério Público possa dar início ao processo sempre que o interesse da vítima o aconselhe, nos termos do art. 178.º, n.º 2 do Código Penal, funcionando, assim, como válvula de escape do sistema quando é manifestamente do interesse da vítima de violação que o Estado se substitua na sua falta de vontade e dê início ao processo.

Assim, temos um sistema que do ponto de vista da Lei Penal funciona porque tem em conta todos os equilíbrios e bens jurídicos que a Lei visa proteger, conforme resulta, aliás, do espírito e da letra da Convenção de Istambul que trata, entre outros, desta problemática dos crimes sexuais.

Por fim, diz o bom senso empírico, que quem sabe se foi violada (sem consentimento seu/contra a sua vontade) é a vítima. É por isso função do Estado dar segurança e proteção para que a vítima apresente queixa em total liberdade. Por vezes o Estado falha neste capítulo e temo que a proposta de alteração da natureza da violação de semipública para pública vise mascarar essas falhas do Estado, tentando através do absurdo jurídico redimir a insegurança e desproteção a que estas vítimas muitas vezes estão sujeitas.

Nestes termos, procurei demonstrar que a liberdade sexual de adultos é desconsiderada com a alteração proposta para natureza pública do crime de violação; que maiores são capazes de tomar decisões sobre a sua vida e a Lei não deve substituir à sua vontade ou consentimento; que só por ativismo político se produzem propostas absurdas como a alteração para natureza pública do crime de Violação; que essa alteração é ineficaz, própria de um Estado policial, um atentado à intimidade e promete expor as pessoas contra a sua vontade humilhando-as.

Por fim, concluo afirmando que a proposta de alteração da natureza da violação de semipública para pública, tem como objetivo teleológico o aproveitamento político através da criação de ruído à volta de um crime que todos concordamos em classificar como hediondo. O alvo é, assim, colocar adultos ao nível de menores ou de incapazes, desconsiderando em absoluto a sua vontade e liberdade, criando agressores e forçando o papel de vítima. Isto não é de todo liberdade, é luta política para soundbite!