O Dr. Rui Rio resolveu sossegar os seus candidatos às autárquicas: podem estar confiantes, porque o “desgaste do governo” joga a favor deles. Sim, o “desgaste” dos governos geralmente beneficia as oposições. Mas em Portugal, há neste momento outro desgaste, mais importante: o desgaste do país. E esse, infelizmente, favorece o governo que dele é responsável.
O “desgaste do governo” é, para começar, um mau conceito. Pressupõe que o actual governo alguma vez tenha usufruído de grande graça e popularidade. Nunca usufruiu. O Partido Socialista não convenceu muita gente. Nem as esquerdas que o amparam. Quando passaram pela oposição, entre 2011 e 2015, esperou-se que o PS e a extrema-esquerda aproveitassem a contestação à troika para vencerem: não venceram. No governo, entre 2015 e 2019, acreditou-se que iam tirar partido das larguezas do Banco Central Europeu e da bonança turística para ampliarem a maioria: não ampliaram significativamente. Nunca uma maioria absoluta assentou em tão poucos votos. Não, este governo nunca teve um pilar tão grande que se pudesse desgastar sem provocar logo a sua queda. Se não caiu, é porque não está desgastado.
O governo de António Costa saiu da fraqueza das esquerdas, e essa fraqueza, que continua, prevenirá sempre que os socialistas e os seus aliados se tornem complacentes ao ponto de fazerem guerra uns aos outros. Por esse lado, não se desgastará. E não se desgastará também por outro lado, porque Costa e os seus aliados souberam fazer o que era preciso para impedirem a generalização de descontentamentos e discussões: a segmentação da população e o controle do debate público. A segmentação ficou clara com o suposto “fim da austeridade”: 35 horas para uns, e mais impostos para os outros. O controle do debate público foi atingido de duas maneiras: pelo aproveitamento da fragilidade económica da comunicação social, e pela criminalização da diferença de opinião, segundo critérios importados da América – neste momento, qualquer desvio das opiniões aprovadas pelo poder socialista identifica logo qualquer indivíduo ou projecto como de “direita radical”, devidamente “racista”. Por isso, Portugal foi, durante a epidemia, um dos países do mundo em que morreu mais gente, mas a imprensa, obedientemente, continuou a escrever redacções sobre o “Brasil de Bolsonaro”. Daí que o “desgaste” do governo não se tivesse notado depois da epidemia, tal como já não se tinha notado depois dos fogos de Pedrogão, da farsa de Tancos, e não se nota agora depois do fiasco da nacionalização da TAP.
Nos últimos vinte e seis anos, o Partido Socialista tornou o Estado fiscalmente inviável e dependente, num país cada vez mais envelhecido e em divergência económica da Europa. Mas essa rota de desgaste, assinalada pela queda nas tabelas europeias, reforçou até o poder socialista. Uma sociedade depauperada e dependente tem mais dificuldade em desafiar quem manda. Limita-se, quando não tem interesse directo no sistema, a abster-se, como desde 2019 já faz a maioria do eleitorado em eleições legislativas. O desgaste do país produz apenas o desgaste da democracia, não o desgaste do poder socialista.
No último quarto de século, aliás, só crises fiscais agudas, como as de 2001-2002 e de 2010-2011, propiciaram rotações em Portugal. Os períodos de alternância foram breves (menos de sete anos em 26) e os constrangimentos financeiros limitaram o seu alcance. As oposições de direita serviram para pouco mais do que faxinas, encarregados de pôr as contas em ordem. Por vezes, à custa dos seus princípios, como no caso dos impostos. Isto desgastou as direitas, cujas “ideias” e “propostas concretas” passaram a ser encaradas com bastante cepticismo. Como seria de esperar, alguns foram tentados a pensar que o problema era a solução. Porque não juntarem-se a quem não conseguem vencer? Rui Rio colou assim o PSD ao poder socialista, com a esperança de levar o eleitorado a ver no PSD apenas outro PS, até de “esquerda”, e que portanto poderia substituir o original sem o risco de mudanças maiores. A facção derrotada no último congresso do CDS desenvolveu uma variante da mesma ideia de Rio: fazer PSD e CDS declararem que o seu inimigo não está à esquerda, mas à direita, não é o PS, nem o BE, nem o PCP, mas o Chega, com a igual expectativa de serem acolhidos no circuito do poder socialista. Rio e a facção derrotada do CDS reduziram-se assim a uma espécie de oposição à oposição. Em 2019, os seus recuos eleitorais reflectiram a miséria destes calculismos.
O que funciona, então? Com o seu clamor “anti-sistema”, o Chega e a Iniciativa Liberal não provaram poder ser mais do que pequenos partidos. A falta de quadros e as inconsistências políticas são demasiado óbvias. Basta dar como exemplo as suas candidaturas autárquicas ou a distracção de ambos em relação à Carta da Censura Digital.
Durante anos, as direitas confrontaram o país com uma escolha: ou reformas, ou crise. A política do BCE desmontou esse desafio. Agora, é possível recusar reformas sem correr o risco de uma crise. A UE garantiu também que a “austeridade” pode ser disfarçada por meio de cativações e impostos indirectos. Esta política, que é a do PS e dos seus aliados, tem um resultado: declínio. O estudo da Fundação Gulbenkian sobre finanças públicas descreve uma das etapas desse declínio: a prazo, sem que nada mude, teremos mais impostos ou menos benefícios. Mas a chave aqui está na expressão “a prazo”.
Era relativamente fácil fazer oposição com a perspectiva de uma catástrofe iminente. É muito mais difícil constituir alternativas num país em declínio, porque os declínios são graduais e ferem sobretudo as gerações futuras. Também não é fácil fazer oposição a um poder como o socialista, que segmentou o país e controla o espaço público. Há, no entanto, surpresas como os Açores. O que cabe a uma oposição de direita neste momento não é regurgitar “ideias” que toda a gente já conhece desde 1979 nem “propostas concretas” que, sem a perspectiva de governo, não comovem ninguém. É estar politicamente preparada. Não, não é pouco: é imenso. Não, não é fácil: é muito difícil. Tem de começar por duas coisas: definir que a sua principal “linha vermelha” é aquela que a divide do poder socialista; e garantir que à direita do PS tudo será somado nos devidos termos para propiciar uma alternativa estável. O resto decorrerá daí. Qualquer outra coisa é lirismo.